segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 410

Diversos fatores podem causar a Insuficiência Renal Crônica (IRC), levando uma pessoa a iniciar o tratamento de hemodiálise como terapia substitutiva do papel dos rins no corpo humano, que é o de filtrar o sangue. As causas mais comuns são hipertensão arterial, diabetes, infecções renais, nefrites e glomerulonefrites.

Mas, nem sempre as pessoas perdem seus rins por doença.

É o caso, por exemplo, de Marluce, que dialisa comigo. Numa conversa com os colegas do mesmo box, ela nos revelou o que a fez perder seus rins: foi espancada violentamente pelo marido alcoólatra. Sempre que chegava bêbado em casa ele batia nela até deixá-la caída no chão. Numa dessas vezes, ele chegou em casa ainda com mais gana, louco para “brigar”, perguntando “Marluce, cadê você?”, e ela, aterrorizada, correu para o quarto. Ele foi atrás dela e já foi logo lhe dando um soco no estômago, que a derrubou no chão. Então, ele a esmurrou no rosto e a chutou até que se desse por satisfeito. “Cansou e foi dormir”, contou-nos ela. Marluce, toda arrebentada, foi socorrida no chão pelos filhos, que não se intrometeram na “briga” dos dois com medo do pai. Por sorte, ela conseguiu sair viva da surra, mas perdeu os rins pela selvageria desse espancamento e hoje está fazendo hemodiálise.

C., uma garota com quem trabalhei, contou-me que teve falência renal súbita porque tomou quatro comprimidos de ecstasy de uma só vez. Passou mal na balada, foi parar na UTI e não teve jeito: perdeu ambos os rins e entrou pra hemodiálise.

A minha história é outro exemplo. Nasci com os rins perfeitos, mas com um defeito congênito no esfíncter da bexiga. Portanto, eu não urinava como os bebês normais, muito menos com a mesma frequência: apenas quando fazia cocô é que a urina saía também, devido ao esforço da defecação. Minha mãe notou isso tarde demais. Tornei-me renal crônico devido ao chamado refluxo: minha bexiga enchia até não poder mais e a urina acabava voltando para os rins, pressionando-os. Aos dois anos de vida, perdi o primeiro rim e fiz uma nefrectomia. O outro também já estava muito prejudicado e os médicos tentaram conservá-lo o máximo possível, através de inúmeras cirurgias na bexiga, cateterismo intermitente e outra sonda nas costas. Assim, eu tinha de passar uma sonda pela uretra várias vezes ao dia para eliminar a urina, para não ficar à mercê de infecções, apesar de haver risco de infecção com o próprio cateterismo. Eu não sentia minha bexiga encher, nunca tinha vontade de ir ao banheiro, e muitas vezes fazia xixi nas calças, o que é constrangedor, ainda mais quando se está na escola, cercado por crianças que às vezes podem ser bem cruéis – felizmente, eu nunca me deixava levar pelos comentários maldosos. Sempre tive muitos amigos e isso me mantinha são mentalmente.

O rim que restou, muito danificado, durou apenas até os 12 anos de idade, quando comecei a usar uma sonda nas costas, porque o funcionamento dele já estava muito precário. A sonda funcionava assim: foi feito um buraco nas minhas costas ligando uma bolsa para coleta de urina ao rim. Todo mês, para não causar uma infecção na região do buraco por onde a sonda entrava no organismo, era necessário trocá-la, e ela era presa à pele por uma sutura – eu levava um ponto nas costas a frio, pois anestesiar o local já seria uma picada, então, dava praticamente no mesmo. Nessa época, o cateterismo foi crucial para eliminar o resíduo que passava para a bexiga, para me deixar livre de infecções. Passar a sonda pelo pênis era uma tortura, mas eu tinha de fazer, pois, a cada infecção urinária, as bactérias iam se tornando cada vez mais resistentes aos antibióticos que me davam. Fiquei 3 anos com a sonda nas costas, eliminando a urina por bolsas portáteis, que carregava no bolso. Então, fiz a outra nefrectomia, pois o rim restante estava funcionando com 10% da capacidade e começava a colocar em risco minha vida, e comecei a fazer hemodiálise, como preparação para o transplante renal. Fiz meu primeiro transplante 5 meses depois, em dezembro de 1995.

O irônico é que fiquei “curado” da bexiga, aprendendo a esvaziá-la através de técnicas de massagem que me foram ensinadas, e outras que descobri sozinho. Mas tornei-me portador de IRC.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 409

A sessão de ontem parecia não ter fim, como já ocorreu muitas outras vezes. Dava a impressão de que a última hora estava durando uma sessão inteira de 4 horas. Fiquei vendo quanto tempo faltava para minha sessão acabar olhando para o tempo que faltava para a sessão dos outros terminar, na máquina deles: 56 minutos, 56 minutos, 56 minutos..., 55 minutos, 55 minutos, 55 minutos..., 54 minutos, 54 minutos, 54 minutos...

Quando faltavam 10 minutos para terminar minha sessão, comecei a ter cãibra no pé direito – pacientes em tratamento de hemodiálise apresentam câimbras com frequência, e isso acontece ou porque se retira líquido demais do organismo (ultrafiltração) ou devido às elevadas taxas de anti-hipertensivos no corpo, ou, ainda, por causa do desequilíbrio dos eletrólitos, como a falta de potássio. Inclinei-me para a frente na cadeira e me sentei para tentar massagear o músculo que se contraía, e aí minha pressão começou a baixar. Antes que aquela sensação de morte, que já comentei, se instalasse, falei para a equipe de enfermagem que minha pressão estava caindo e um dos enfermeiros veio rapidamente cuidar de mim. Já que estava prestes a ser desligado, aproveitaram para me injetar gluconato de cálcio – como sempre tomo no final da diálise, devido à deficiência de cálcio –, que produz uma sensação de queimação na circulação sanguínea, que não é dos efeitos mais agradáveis e veio se somar à queda de pressão e à cãibra, mas melhorei depois disso.

Já em casa, um pouco recuperado, porém exausto – nem comi, deitei direto –, fui acordado por uma repentina cãibra no braço da fístula. Não havia o que fazer, e era o tipo de cãibra que ia judiar, não só por ser uma cãibra – afinal, cãibra todo mundo tem! –, mas, por não ser possível massagear o músculo que fica embaixo da fístula, para amenizar a dor. É a dor por conta própria, até que decida ela mesma ir embora. Com a dor intensa, fui até o chuveiro colocar o braço embaixo da água pelando, porque às vezes ajuda a aliviar, mas, como minha pressão já havia caído na sessão, ela começou a baixar novamente e eu percebi que ia desmaiar no banheiro, então, corri para o quarto antes que batesse a cabeça na quina da pia ou na borda da privada ou algo assim, e deitei na cama.

Nesse tratamento, não se tem um dia de sossego, ora é um tipo de tormento, ora outro. Não há um dia em que eu esteja me sentindo cem por cento, completamente sem dor, ou sem tontura, ou sem pontadas no coração, ou sem ânsia de vômito, ou sem fraqueza... Tudo isso cansa e, às vezes, desespera: faz você desejar ser uma pessoa com mais saúde.

Hoje, o Seu Antônio, que não é o mesmo Seu José Antônio citado no post “Sessão de Hemodiálise 399”, passou muito mal na diálise. Quando eu tirei essa foto dele (distante, para preservar sua identidade), captando sua agonia, ele já havia sido desligado da máquina. E ele ficou nesse estado por um bom tempo.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 408

A sede faz parte da rotina de quem faz hemodiálise.

Sentir sede e ficar se policiando para não tomar muito líquido não é fácil. Sabemos muito bem que quando nos é restringido algo que tínhamos em abundância, isso se torna muito mais desejado do que antes. Quando se faz hemodiálise, é crucial ter esse tipo de responsabilidade, pois se o corpo acumula muito líquido entre uma sessão e outra, a máquina exige que o coração trabalhe mais para retirar o excesso do organismo, e isso causa uma sobrecarga cardíaca perigosa, fatal inclusive.

O ideal é que os pacientes não ultrapassem os 2 quilos do peso seco, que, como já comentei, é o peso-base que todo paciente em tratamento de hemodiálise deve ter para que a clínica possa controlar a quantidade de líquido que ele ganhou entre as sessões. Na verdade, quanto menos peso o paciente ganhar entre uma sessão e outra, melhor.

Os alimentos também contêm líquido, uns mais outros menos. Se você come um prato de feijão com arroz ou um macarrão ao sugo, por exemplo, o caldo do feijão ou o molho de tomate contribuirá para a quantidade de líquido que ficará acumulada no seu corpo. Então, médicos e enfermeiros recomendam que o paciente se vigie nesse sentido.

É uma tortura física e psicológica não poder se saciar com um bom copo de água gelada na hora que bem entender, mas essa é uma das condições impostas pelo tratamento, se você quiser sobreviver à hemodiálise.

domingo, 23 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 407

Passei mal ontem no fim da sessão de hemodiálise. Quando a pressão cai, você é tomado por uma fraqueza e um congelamento interno e perda da visão e, com a noção do perigo da vida estar se esvaindo de seu corpo, um desespero toma conta de você, piorando ainda mais o seu estado.

Pois esse tipo de hipotensão súbita pode levar à morte e ocorre com tanta frequência com os pacientes que os enfermeiros estão acostumados a lidar com essa situação. Também hoje, um paciente em outro box teve queda de pressão, pela segunda sessão consecutiva. Então, eles aplicam uma dose de sódio na veia. Demora um pouco, mas o paciente fica estabilizado.

Da última vez que tive hipotensão, além de ter uma sensação de estar morrendo muito pior do que a de hoje – “Socorro, me ajuda, me ajuda, por favor...” –, vomitei em mim mesmo e quase engasguei com meu próprio vômito. Quando finalmente aquela sensação terrível começou a ir embora, vi que havia vômito no meu rosto, ombro e braço esquerdos, camiseta, cobertor e travesseiro (eu levo um cobertor e um travesseiro à diálise para tentar passar a sessão com conforto). Os enfermeiros já haviam me providenciado papel para que eu me limpasse, mas só consegui fazer isso depois que tive forças para mover o braço direito, então livrei do vômito o rosto e parte do braço. Mas, como ainda havia algum tempo para a sessão acabar, fiquei lá deitado, com outras partes do corpo mergulhadas no meu próprio vômito.

Existe uma espécie de “ética”, pelo menos na clínica em que faço tratamento, na qual as pessoas – tanto enfermeiros como pacientes – não ficam encarando o paciente quando ele tem um problema desse tipo. Acho que é para que não fique envergonhado com o que fez, apesar de, obviamente, o culpado por isso ser o tratamento – a hemodiálise.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 406

Quando não se tem rins para fazer o trabalho de limpeza do seu organismo, as toxinas que deveriam ser eliminadas ficam presas, circulando pelo corpo, causando um terrível mal-estar, e o risco de algo muito mais sério acontecer.

Nos primeiros meses de diálise até que eu aguentava bem entre uma sessão e outra, mas, conforme o tratamento foi tendo continuidade, minha condição foi se agravando e hoje percebo que não há um período entre sessões, especialmente de sábado para terça (tempo mais longo que fico sem dialisar), que eu não passe intoxicado.

E quando se está intoxicado não há o que fazer para acabar com os sintomas, a não ser aguardar a próxima sessão de diálise. Também não há o que fazer para não ficar intoxicado, pois todo e qualquer alimento contribui para o acúmulo de toxinas no corpo. Posso e devo controlar o que bebo (aliás, a sede é outro drama que vivem os pacientes em hemodiálise), mas não posso deixar de comer, certo? Então, o corpo fica todo formigando, pesadíssimo, num estado de letargia. Não se consegue pensar com clareza, a visão escurece e a única coisa que se deseja é que a próxima sessão chegue logo para a máquina limpar o organismo e você deixar de ser um zumbi.

Devido à intoxicação, passei muito mal esse último fim de semana, assim como o anterior e vários dias entre as sessões antes disso. Sinto como se estivesse chegando no limite para uma catástrofe, da qual eu possa até sair vivo, mas que com certeza substituirá o Guilherme que eu era.

Já vi acontecer com muitas pessoas: a hemodiálise deteriora um ser humano, consome dolorosamente sua vida.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 405

Comparação entre uma agulha normal (à direita) e a agulha usada na hemodiálise (à esquerda). São duas espetadas dessa por sessão, e se o enfermeiro não for bastante experiente, dói não só para enfiá-las, como também para tirá-las: as agulhas saem rasgando a pele se ele pressionar a gaze contra a agulha na hora de retirá-las.

domingo, 16 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 404

Qualquer pessoa pode doar um rim e livrar um paciente renal do tormento da hemodiálise. Não precisa ser parente (pai, mãe, irmãos, tios, primos, avós): para testar a compatibilidade, basta ter o mesmo tipo sanguíneo. Quando alguém se propõe a doar um rim a um familiar, amigo ou até a um mero conhecido, não só está livrando essa pessoa da diálise, como também diminuindo a longa fila e dando oportunidade a outros pacientes de fazer o transplante de cadáver mais rapidamente. Ou seja: é um bem que se faz não apenas a uma pessoa, mas a milhares!

Essa semana, fui à consulta com a nefrologista e, enquanto aguardava na sala de espera, vi algo que me deixou impressionado. Uma paciente de Tocantins, dentista de nome Andrea, alugou um apartamento perto do hospital em que estava se tratando em São Paulo, e uma moradora, chamada Romana, que a conhecera há tão pouco tempo, comovida com a sua história, ofereceu-se para doar um rim a ela. Fez o teste de compatibilidade, e Romana, praticamente uma estranha para Andrea, vai ser a doadora!

No consultório, ela estava tirando dúvidas com um homem de uns quarenta e poucos anos, de nome Cesar, que havia doado o rim para a filha há três meses. Cesar comentava com Romana como é fácil para o doador: 2 dias depois da cirurgia, ele já estava andando normalmente; 2 semanas depois, já estava de volta ao trabalho; 2 meses depois, já estava jogando futebol (“e olhe que futebol é um esporte de impacto!”, disse ele). Romana se empolgou, pois ela joga tênis, e percebeu, pelo relato de César, que poderia retornar ao tênis bem antes do que imaginava. “Supertranquilo... supertranquilo”, Cesar insistia.

Cesar, que pretendo entrevistar e reproduzir o resultado aqui, não cansava de repetir: o transplante não afeta de modo algum a saúde do doador. E, devo completar, também não diminui em nada a expectativa de vida do doador. Se esse tipo de cirurgia prejudicasse mesmo que minimamente os doadores, os médicos não transplantariam. Ao contrário, eles incentivam a doação de órgãos (pulmão, medula, parte do fígado, rim) de doadores vivos. No caso do rim, as vantagens da doação entre vivos são gritantes:

1) As chances de o transplante dar certo são maiores.
2) Geralmente, o órgão transplantado dura muitos anos mais do que o rim de cadáver.
3) Quando se tem definida a data da cirurgia, os preparativos e tratamentos preliminares necessários podem ser feitos com mais eficácia.
4) O tempo de espera na fila única (por Estado) é de anos. Muitas vezes o paciente morre na fila, aguardando um rim.
5) O paciente é libertado mais cedo de todo sofrimento e do risco de morte que estar em diálise acarreta, bem como da deterioração física certa e veloz.

Além de a doação não afetar de modo algum a saúde do doador, ainda causa um enorme bem psicológico a ele, por saber que aumentou a esperança de vida de outro ser humano e o salvou do sofrimento. César e Romana que o digam. Seus olhos brilhavam de orgulho e satisfação.

Há sempre alguém que tem um familiar ou um conhecido que está em tratamento de hemodiálise. Para se oferecer como doador, essa pessoa só precisa fazer um teste inicial para verificar a compatibilidade com o receptor. Sim, é uma cirurgia. Fácil, simples, rápida, sem risco. São alguns dias de recuperação para o doador e uma vida livre de sofrimento para o receptor.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 403

Isto está sendo escrito durante a sessão.

Acabo de saber, conversando com uma das enfermeiras, algo que me abalou profundamente: perdemos mais um colega nosso de diálise, devido a uma das complicações corriqueiras que o tratamento pode ocasionar. Seu nome era Marcelo, um jovem de 33 anos, que morreu de derrame, e deixa 3 filhos pequenos.

Hoje só vou escrever isso.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 402

As clínicas de hemodiálise realizam três sessões em um dia, seis dias por semana. Normalmente, os três turnos são: 7–11hs, 11–15hs e 15–19hs. Eu dialiso no segundo horário, das 11 às 15 horas.

Eu até que moro próximo à minha clínica, pois, geralmente, quando o paciente entra em programa de hemodiálise pelo SUS, o governo indica a clínica que fica mais próxima de sua residência. Mas há muitos pacientes que não desfrutam desse privilégio – o irônico privilégio de ser espetado mais rápido – e às vezes chegam a morar a 2-3 horas ou mais de distância de sua clínica.

As pessoas que dialisam no primeiro turno às vezes têm de acordar às 4 horas da manhã, se não quiserem chegar atrasadas para a sessão. Não é uma questão de disposição; se o paciente não for para o tratamento, ele irá morrer. Se faltar sequer um dia, ele também poderá morrer. Deve-se ter muita coragem e sangue frio para forçar-se a acordar depois de finalmente conseguir dormir, já que a hd costuma causar uma terrível insônia, e sair do conforto de sua casa para fazer essa jornada em busca de uma sobrevida, sem inclusive saber o que esperar da sessão.

Sair “bem” da hemodiálise – é unânime –, ninguém sai, apesar de os enfermeiros sempre perguntarem “Você está bem?” e os pacientes responderem que sim, para partirem logo da clínica, e tentarem retornar ao que lhes sobrou de uma vida normal. No mínimo, o paciente se levanta da cadeira com uma tonteira e uma sensação de fraqueza, o que o faz andar com cautela. Agora, imagine pegar um ônibus de volta para casa nessas condições, durante 3 horas. Não é à toa que os pacientes em tratamento de hemodiálise têm direito a transporte gratuito com acompanhante.

Certa vez, levantei-me da cadeira e comecei a ter ameaças de convulsão – o que chamo de “ausência”, e que poderia descrever como o ato de apagar e acender rapidamente um interruptor, só que a luz que está acesa é o meu cérebro – e subitamente comecei a perder o equilíbrio, pois a consciência some e volta numa fração de segundo. Os enfermeiros perguntaram se eu estava bem e, logicamente, respondi que não, pois, se eu deixasse a clínica naquele estado, poderia convulsionar no meio da rua e ninguém viria me socorrer, ou, se viesse, poderia ser tarde para mim. Então, eles me administraram anticonvulsivante e os sintomas passaram algum tempo depois.

Uma vez tive uma crise num restaurante por quilo, e quase derrubei a bandeja que estava segurando quando estava fazendo meu prato, entornando uma boa parte da minha comida no chão. Tenho muito medo de ter essas crises fora da clínica, onde não poderei ser salvo. É uma bomba-relógio com um timer de tempo indefinido.

sábado, 8 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 401

Na hemodiálise, eu vejo que a maioria das pessoas dorme – ou tenta dormir, porque, além de ser difícil dormir com o corpo preso à máquina, a equipe de enfermagem deve medir a pressão de hora em hora para verificar se o paciente está bem. E dormir com o sono entrecortado não é dormir.

Os pacientes que têm fístula devem tomar cuidado para não dormir em cima do braço que está ligado à maquina. Uma vez, dormi em cima do braço da fístula e a agulha escapou da veia, causando uma terrível e dolorosa infiltração. O sangue foi empurrado para baixo da pele na velocidade com que o coração o bombeia. A dor é intensa, e se os enfermeiros não vêm socorrer você rapidamente – e eles vêm, porque a clínica inteira escuta seu berro de desespero –, parece que o braço vai estourar.

Às vezes, eu consigo dormir um pouco. Hoje, por exemplo, eu dormi – muito mal. O problema é que geralmente quando eu durmo na diálise tenho pesadelos. Muitas vezes eu acordo com trancos fortes, sobressaltado, como se a primeira imagem que surgisse quando eu começo a sonhar fosse uma porta batendo na minha cara. Para evitá-la, eu acordo com um pulo. Isso chama a atenção de enfermeiros e pacientes que estão na área do meu box. Noto que isso tem ficado cada vez mais frequente, e temo que cause infiltrações, pois não se pode ficar chacoalhando com as agulhas no braço.

Definitivamente, não existe tranquilidade num sono assim. Também, de que adiantaria ter sonhos lindos, e acordar para a realidade de uma sessão de hemodiálise?

Em determinado momento, em um de meus trancos, acordei e percebi que uma mulher com um uniforme de uma empresa de atendimento de emergência estava trazendo uma senhora idosa desacordada em uma maca. Ouvi-a dizer que a paciente estava com uma séria infecção bacteriana no pé que lhe causava diarreia – ela passaria toda a sessão revirando-se nas próprias fezes, impotente, sem poder se levantar. Vi os enfermeiros a colocaram prontamente na cadeira vizinha à minha, já que o Seu José Antônio foi transferido para outra máquina. Algum tempo depois, essa senhora, a Dona Maria Lúcia, começou a gemer, “Ai... ai... ai... ai...”. Lembrou-me muito outra idosa que também era vizinha minha quando fiz hemodiálise em 1995, antes do meu primeiro transplante, a Dona Maria José. No decorrer de toda a sessão, ela implorava “Desliga eu... desliga eu... desliga eu...”. É muito cruel ver idosos terminarem – assim como crianças iniciarem – a vida desse jeito, presos a uma máquina que salva a sua vida em troca de uma qualidade de vida tão baixa.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 400

Para se fazer hemodiálise é necessária uma fístula arteriovenosa, ou um cateter, que é colocado cirurgicamente no peito ou no pescoço do paciente. Eu tenho uma fístula na dobra do braço esquerdo - extremamente dilatada. Também já tive uma no pulso, que foi fechada quando fiz o primeiro transplante.

Os médicos fizeram essa fístula no meu braço há 11 anos, 3 dias antes do meu segundo transplante, para fazer 1 sessão de hemodiálise. Se o transplante dá certo, os médicos tiram a fístula, pois ela pode causar inúmeras complicações.

Mas a minha não tiraram e, ao longo dos anos, ela começou a sobrecarregar o meu coração e afetar o meu sistema vascular, o que diminuiu consideravelmente a minha expectativa de vida; tive dezenas de sérios edemas pulmonares, por diversas vezes quase morri com essas intercorrências que me levavam à UTI.

Essa fístula danificou seriamente o meu coração, aumentando-o. Não posso fazer muito esforço, não posso me exaltar, não posso nem transar com minha namorada, pois corro o risco de ter um ataque do coração. Vivo nessa condição há anos.

Nos últimos tempos, os problemas causados pela fístula ficaram mais evidentes. Eu não poderia fazer um terceiro transplante com essa fístula no braço, como ocorreu com o segundo transplante, porque não dá para fazer uma cirurgia desse porte com a fístula aumentada como está, já que, para operar, o coração deve estar minimamente preparado. Então, nos próximos meses devo tentar diminuí-la, ou então fechá-la, para aí colocar uma fístula em outra parte do corpo.

Esse é um outro problema da fístula. Os médicos fazem uma fístula no braço que o paciente menos utiliza, portanto, se o paciente é destro, os médicos irão operar o braço esquerdo, e vice-versa. Mas, fístula não dá em árvore, e se ela é feita em um ponto do braço, esse ponto não pode ser utilizado novamente para fazer outra, caso ocorra algum problema com a anterior – o que normalmente acontece. Aí, raramente, eles conseguem outro ponto no mesmo braço; se não conseguem, vão para o outro braço, depois para as pernas, pescoço, mas aí teria de ser um cateter, e não fístula.

Os médicos sempre dão preferência à fístula, pois ela fica dentro do paciente. O cateter, por outro lado, por ser um acesso externo, expõe o paciente a um sério risco de infecções, podendo causar septicemia e levá-lo à morte.

A validade da fístula que eu tenho agora já expirou. Os médicos querem a todo custo mexer nela, espantam-se ao ver como ela está desenvolvida. A fístula não permite que eu movimente o braço esquerdo como faço com o direito, porque o braço se cansa com facilidade, portanto, se a colocarem no braço direito, como poderei me sustentar, se trabalho exclusivamente escrevendo e digitando?

Se eu conseguir me livrar da fístula com um transplante, o meu coração não será mais forçado e poderá se recuperar.



Os pacientes em diálise não lidam apenas com o problema renal.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Sessão de Hemodiálise 399

Antes, mais um esclarecimento: a hd, além de machucar, destruir e matar, é um tratamento que exige muito do corpo. Portanto, é essencial que o paciente, ao chegar em casa, depois do tratamento, alimente-se e descanse. Então, sempre escreverei aqui depois de descansar, à noite ou de madrugada. Se eu não dormir após a sessão, tenho convulsões.

Eu faço diálise às terças, quintas e sábados das 10:30 às 15hs, e isso porque moro a 10 minutos da minha clínica. Para chegar ao centro do sofrimento é fácil; sair dele, é demorado, penoso, às vezes impossível.

Terça-feira é o dia que mais chego intoxicado, pois meu corpo ficou dois dias sem diálise, diferente das sessões de quinta e sábado, que têm intervalo de um dia. Então, você acaba desejando que a primeira diálise da semana chegue logo - é uma ironia desejar parar de sofrer com o sofrimento. A intoxicação dá um terrível mal-estar: o corpo todo fica pesado, parece que seu peso dobrou; a pele formiga, a vista fica embaçada, dá falta de ar, ânsia de vômito, uma lerdeza geral que impede de fazer qualquer coisa.

Passei muito mal nos dois últimos dias, anteriores à diálise de hoje, com todos esses sinais de intoxicação. Nesses casos, eu tomo bicarbonato de sódio para atenuar os sintomas, mas o mal-estar geral perdura até que eu seja duplamente furado pelas agulhas enormes e o tratamento inicie. Aí, vem o sofrimento do tratamento em si.

Um braço fica preso às agulhas, mas isso não me impede de trabalhar durante a sessão. Como revisor de texto, posso levar meu trabalho para a sessão e fazê-lo ou no papel ou no laptop. Hoje, fiz as duas coisas. E fiquei com uma tremenda dor de cabeça, do tipo pontada nas têmporas. O trabalho até que rende na diálise, mas isso sempre me traz problemas quando me forço demais (não tem jeito, eu lido com prazos); às vezes dá dor de cabeça, às vezes hipotensão, às vezes convulsão.

Por falar em convulsão, enquanto trabalhava no computador, duas enfermeiras que estavam sentadas próximas a mim começaram a comentar sobre uma séria convulsão que tive há um ano e meio. E me revelaram fatos perturbadores que eu não tinha conhecimento até então, como, por exemplo, que eu havia "parado". Eu não sabia que, além de ter perdido a consciência, ficar me debatendo com as duas agulhas enormes balançando no braço e expelir uma quantidade assustadora de sangue pela boca e pelo nariz - a ponto da enfermeira comentar que nunca havia visto tanto sangue -, meu coração havia parado por muito tempo! Mas o médico da clínica era muito bom, calejado em atendimentos de emergência, me entubou, fez massagem cardíaca e salvou minha vida. Isso aconteceu no finalzinho da sessão, faltando uns 5 minutos, e eu só me lembro de estar no final da diálise e depois acordar entubado na UTI, com uma sonda na uretra, uma agulha no braço, e a voz de um homem dizendo que eu havia tido uma convulsão e que estava no hospital. Com certeza não era Deus, porque aquilo era um inferno. Depois que tive alta e voltei à clínica, as enfermeiras comentaram que os pacientes do meu box (na hd, cada enfermeiro é responsável por cuidar de uma área, denominada "box", com aproximadamente 4 pacientes) passaram muito mal ao me ver daquele jeito. Portanto, além de ter morrido, eu poderia ter matado dois.

Mas, no final, acabei ficando bem, exceto pelas crises convulsivas que passei a ter desde então. Depois daquela, tive outras três mais sérias, duas das quais me levaram ao hospital. Tive sorte, pois, com o coração parado, o sangue poderia não ser bombeado para o cérebro e eu poderia ter ficado com alguma sequela bastante séria, como ocorreu recentemente com uma ex-vizinha minha de box, a Graça: ela teve três paradas cardíacas e também "parou", por tanto tempo que ficou sem oxigênio no cérebro - ficou paraplégica, falando torto, incomunicável. Cortesia da hemodiálise.

Na sessão de hoje, a enfermeira chegou com dois termômetros: um branco e outro rosa, coisa que nunca havia acontecido. Aí, ela entregou o branco para mim e o rosa para o meu atual vizinho de box, o Seu José Antônio. Ao vê-la entregar o termômetro diferente a ele, eu pedi, brincando, "Ahhh, eu quero o rosa", e ela, entrando na minha brincadeira, trocou os termômetros com a maior naturalidade. Engraçada foi a naturalidade com que ela fez isso! Não disse nada, não fez cara feia, não riu; só agiu normalmente.

Eu tirei uma foto do Seu José Antônio.
É desse modo que ele fica em todas as sessões:

domingo, 2 de maio de 2010

Esclarecimentos

Antes é necessário esclarecer alguns pontos:

O que é hemodiálise?
A hemodiálise é o processo de filtragem e depuração de substâncias indesejáveis do sangue como a creatinina e a ureia. A hemodiálise é uma terapia de substituição renal realizada em pacientes portadores de insuficiência renal crônica ou aguda, já que nesses casos o organismo não consegue eliminar tais substâncias devido à falência dos mecanismos excretores renais. (Fonte: Wikipédia)

O que realmente é a hemodiálise?
É um tratamento doloroso, que mata aos poucos, o que o torna um compromisso com o sofrimento 3 vezes por semana. Ao chegar à sessão, o enfermeiro enfia 2 agulhas calibrosas (4 vezes maior do que uma normal) no braço do paciente, para retirar o sangue que irá passar pela máquina que irá limpá-lo. Antes de iniciar o tratamento, entretanto, é feita uma fístula artério-venosa, que é o acesso à máquina por meio das 2 largas agulhas. Assim, antes de começar o tratamento, o paciente é submetido a uma cirurgia no braço para criar uma comunicação entre uma artéria e uma veia, unindo, dessa forma, o sangue arterial com o venoso. Os pacientes ficam sentados ou deitados (se a clínica possuir cadeiras reclináveis) durante a sessão, que pode durar de 3 a 4 horas – a duração é estabelecida com base no nível de toxinas no corpo do paciente quando ele sai da diálise –, que são feitas 3 vezes por semana: segunda, quarta e sexta, ou terça, quinta e sábado. Então, o paciente em programa de hemodiálise tem uma limitação geográfica: não pode viajar, ou ficar longe de sua clínica por mais de 2 dias. Na sessão, retiram-se as toxinas e o líquido acumulados no corpo no entre sessões. Portanto, o paciente tem de fazer dieta e não pode beber muito líquido, pois tudo que beber e os componentes do que comer ficarão acumulados em seu corpo. Por isso, na hd (abreviação para "hemodiálise), há o chamado "peso seco": todo paciente tem um peso-base, e é com ele que se define quanto peso o paciente ganhou entre uma diálise e outra. Por exemplo, se um paciente tem como peso seco 50 quilos e chega à diálise pesando 52 quilos, a máquina terá de retirar 2 quilos de peso dele, para que ele possa terminar a sessão com 50 novamente. Quanto mais peso o paciente retira por diálise, mais risco ele corre, pois a máquina tem de tirar mais em menos tempo e isso força muito o trabalho do coração. Os principais tipos de ocorrência durante o tratamento são: enjoo, queda de pressão, vômito, dor de cabeça, cãibra, fraqueza, desmaio, arritmia, hipertermia, hemorragia, derrame. Alguns agravamentos que podem ocorrer ao paciente que está em tratamento, mas não necessariamente durante a sessão, incluem: parada cardíaca, epilepsia, artralgia (dor articular), coma, entre outros problemas graves. Além disso, o fígado vai acumulando toxinas, a máquina destrói o coração e o sistema vascular, há o risco constante de infecções e novas cirurgias etc. Também, é comum perceber que um colega de hd não comparece mais às sessões: significa que ele ou morreu ou está na UTI, prestes a morrer. As clínicas têm alta rotatividade de pacientes. A expectativa de vida dos pacientes em tratamento de hemodiálise é de 5 anos, por isso, sempre há vagas disponíveis para novos renais crônicos.

Doar um rim pode livrar uma pessoa de todo esse sofrimento.

Por que doar um rim é importante?
O ser humano possui dois rins, que são os órgãos responsáveis pela eliminação de toxinas de nosso corpo, através da urina. Muita gente pensa que não pode doar um rim porque poderá precisar dele mais tarde, caso o outro falhe. Entretanto, a ocorrência de problemas renais sérios sempre recai tanto sobre o rim direito quanto o esquerdo, ao mesmo tempo. Assim, se o indivíduo tiver rins saudáveis, os dois sempre serão saudáveis. Uma coisa importante a se salientar é que a expectativa de vida de um indivíduo que doa um rim não é alterada com a doação. Uma pessoa com um rim é como uma pessoa com dois rins.

A doação do rim é um ato de amor.
Meu nome é Guilherme e escreverei aqui todas as terças, quintas e sábados, sem falta, para registrar o sofrimento ao qual é submetida uma pessoa em tratamento de hemodiálise. O objetivo é sensibilizar as pessoas e incentivar a doação de órgãos.

E também mostrar a minha história.

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