segunda-feira, 28 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 422

Sou graduado em Jornalismo e pós-graduado em Produção Editorial; possuo diversos certificados relacionados a Comunicação, como Preparação e Revisão (Universidade do Livro/UNESP), Roteiro (UAM), Fotografia, Edição, Produção Audiovisual, Making-of, Webcartoon (SENAC) além de cursos técnicos como Processamento de Dados e Gastronomia (Hotec). Mas um currículo, por mais recheado que seja, no meu caso é inútil quando se trata de ascensão profissional: isso não existe para mim. Não só devido à hemodiálise, que me impede de ter um emprego fixo, uma carreira, já que nenhuma empresa aceita contratar um funcionário que está à mercê da instabilidade de uma doença crônica, mas também pelas outras complicações causadas pela IRC.

Minha doença sempre me impediu de progredir profissionalmente; ainda nos tempos do colégio, precisei refazer a quinta série, porque, como o meu aproveitamento escolar naquele ano não havia sido bom – eu faltava muito devido ao entra e sai em hospitais –, a diretora achou melhor que eu repetisse. Alguns anos depois, já com o curso universitário, consegui um emprego numa agência de clipping – meu trabalho era ficar várias horas sentado numa cadeira, com fones de ouvido, escutando e anotando os nomes de empresas que eram citadas nos telejornais. Ao final do expediente, desde o primeiro dia de trabalho, minhas pernas e pés ficavam muito inchados, parecendo que iam estourar. Quando eu chegava em casa, os tênis afrouxados para caber os pés que mesmo assim ficavam espremidos e sensíveis, eu tirava a meia e tentava, com os dedos da mão, puxar em direção ao peito do pé o líquido que ficava acumulado na base dos artelhos, porque ali é onde a pressão do inchaço mais causa dor. Como não aliviava muito, a solução era deitar e ficar com as pernas para cima, para tentar drenar naturalmente um pouco do líquido acumulado nas extremidades.

Há cerca de quatro anos, quando ainda era transplantado, eu consegui um emprego como assistente de produção editorial em uma renomada editora. Se tudo desse certo, eu poderia até ser efetivado. Fui trabalhar normalmente no primeiro dia. No segundo dia, nenhum problema também. Já no terceiro dia, eu desapareci para os meus colegas de trabalho, assim como nas próximas três semanas: peguei varicela (catapora) e fui internado, coisa que eu provavelmente jamais teria se não fosse renal crônico e imunossuprimido. Na próxima postagem, conto as complicações de se contrair catapora quando adulto, com direito a fotos.

Parece sina: toda vez que conseguia um emprego fixo, alguma complicação relacionada à minha doença surgia, o que não é uma infeliz coincidência, mas uma clara evidência de como a minha vida é transtornada e atormentada pela IRC.

Depois da alta, admitiram-me de volta ao trabalho e me pagaram pelo tempo que estive ausente. Legal da parte deles. Mas só não fui mandado embora porque era um trabalho temporário mesmo, para o fechamento do ano, caso contrário, não iriam querer continuar comigo. Nada pessoal, é uma questão financeira: o que vale mais a pena para uma empresa? Contratar um funcionário que vem todos os dias, ou um que talvez não venha amanhã por problemas de saúde? Tanto é que nunca mais fui chamado – ainda que meu trabalho tenha sido elogiado –, nem como temporário.

Enfim, hoje sou freelancer, revisor de texto. Consigo um ou outro trabalho todo mês. Às vezes, não há trabalho. Não há vínculo, não há benefícios, não há segurança. Permanece somente a dúvida: será que terei trabalho amanhã? Pleitear uma aposentadoria fica difícil, porque tenho essa doença desde muito pequeno - não fiquei doente depois de começar a trabalhar com carteira assinada, embora minha condição esteja se agravando.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 421

Ao chegar na sessão de terça, com falta de ar, relatei para a médica a noite difícil que havia passado e ela me explicou que a espuminha rosa surgia por causa do pico de hipertensão aliado a uma série de outros fatores. Fiquei preocupado porque justo naquela terça era dia da coleta de sangue mensal para avaliação.

Todo mês, por volta do dia 20, a minha clínica realiza exames de rotina nos pacientes. No exame do mês passado, os resultados não vieram satisfatórios. A ureia estava muita alta, tanto antes de ser ligado quanto depois de ser desligado da máquina. Assim, as médicas responsáveis já começavam a pensar em aumentar a minha sessão de 3 horas e meia para 4 horas. Somente quem faz hemodiálise pode compreender a diferença que faz 30 minutos a mais de tratamento. Você vê os outros pacientes chegarem mais tarde e saírem mais cedo do que você; sente-se derrotado pela doença, pois pensa que nem mesmo a máquina está dando conta de limpar o seu sangue.

Além da ureia, meus outros exames também não estavam bons: cálcio baixo (um dos fatores que contribuem para as convulsões), mesmo tomando corretamente a medicação para compensar essa deficiência; hematócrito baixo (responsável pela anemia); potássio alto, superior a 6 (acima de 5 já existe o risco de parada cardíaca), mesmo evitando frutas e outros alimentos ricos nesse elemento, fósforo alto...

Como a coleta de sangue foi realizada depois daquela madrugada infernal, temo que os resultados deste mês venham ainda piores, pois o que ocasionou a crise com certeza foi um desequilíbrio que os exames fatalmente acusarão.

Naquele dia, após a retirada do excesso de líquido pela máquina, eu melhorei, mas cheguei em casa tão baqueado que fui obrigado a maneirar nos dias seguintes e acabei atrasando a última postagem. Essas crises detonam o corpo, pois durante todo o tempo em que o chiado e a falta de ar persistem, o coração fica “desembestado”, como se tornar-se acelerado e dolorido fosse a resposta para lidar com a situação caótica em que o corpo se encontra.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 420

Peço desculpas pelo atraso na postagem.

A madrugada de segunda para terça foi um inferno. Um pico de hipertensão me deu falta de ar e não consegui dormir: logo que me deitei, senti uma repentina dificuldade de respirar, e fui tomado por uma sensação de estufamento. Sentei-me na cama e, quando forcei a exalação para esvaziar os pulmões, verifiquei que havia o característico chiado no peito, indício de um problema bastante sério – edema pulmonar. Passaria aquela noite em claro.

Eu estava cansado, pois havia trabalhado muito, o dia todo. O sono era inevitável, só que, ao mesmo tempo, impossível, já que toda vez que me deitava, exausto, meu corpo todo pedindo por um merecido descanso, o oxigênio não chegava aos pulmões na quantidade necessária. Quando caía no sono, acordava sobressaltado segundos depois, com a sensação de que estava prestes a me afogar, o coração latejando freneticamente, como se espremido por uma mão.

Verifiquei a pressão no meu aparelho de pulso e o mostrador marcou 23X13. Tomei minha medicação para pressão alta – minoxidil, um dos anti-hipertensivos mais fortes que existem –, e também coloquei na boca dois captopril sublinguais, mas não adiantou. Quando tossi, cuspi a temida espuminha rosada, sinal claro de que entrara líquido no pulmão; não havia mais volta: era edema pulmonar mesmo, pelo menos foi o que eu achei naquele momento. Essa constatação só piorou a minha ansiedade por estar com falta de ar, pois eu sabia que poderia resultar em mais uma internação hospitalar. Ponderei: a falta de ar não estava tão grave, como de outras vezes. Se eu fosse para a emergência, poderiam me “prender” lá, levantar todo o meu histórico novamente, coletar sangue para exames – o ritual de praxe – e acabariam concluindo que eu precisaria de uma sessão de hemodiálise para retirar o líquido em excesso, coisa que eu já faria mesmo dali a 9 horas, na clínica. A única vantagem do hospital seria tomar oxigênio imediatamente e cessar aquela sensação de afogamento. Dúvida. Falta de ar. Exaustão. Uma bola de neve de agonia.

Finalmente, amanheceu e fui para a clínica de hemodiálise. Comecei a melhorar depois de algum tempo na máquina, e a crise não evoluiu para um quadro de edema pulmonar.

Essa não foi a única nem a pior vez em que isso aconteceu.

Já tive crises desse tipo muito mais graves, e fui parar na UTI diversas vezes com um quadro sério de edema pulmonar. Começava com um pico de pressão, e logo meu pulmão estava cheio de líquido, impedindo-me de respirar; e sobrevinha o desespero do sufocamento, o terror da morte por asfixia. Não é exagero, pois não se consegue tirar o líquido de uma hora para outra, e nem a mais potente terapia de oxigenação consegue aliviar a falta de ar; a tosse de espuminha rosada convertia-se numa secreção sanguinolenta, de um vermelho vivo, tão assustador como o sangue que corre de uma ferida profunda, só que jorrando pela boca, com uma tosse incessante. Chocante até para médicos e enfermeiros, acostumados a lidar com dor e sofrimento alheios: olhos arregalados e desespero, correria, corrida contra o tempo, ouvindo-me dizer “Eu vou morrer!”, ofega-ofega-ofega, “Eu vou morrer!”, ofega-ofega-ofega. Não importava a minha posição – fosse deitado, sentado ou de pé –, às vezes aquele sofrimento durava horas a fio, sem trégua. Quase morri várias vezes. Em comparação, essa última foi um passeio no parque.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 419





Esse sou eu, quando ainda tinha o meu segundo transplante, poucos meses antes de retornar para a hemodiálise.

Encontrei um haikai que fiz logo que voltei para a máquina:

O sangue dá voltas
O ponteiro dá voltas
O tempo não volta

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 418

Lembro-me do dia em que despertei para o real significado da minha doença. Era bem pequeno, devia ter 5 ou 6 anos, e minha avó tinha ido me levar para fazer exame de sangue no Hospital das Clínicas. Até então, eu já havia passado muito tempo em hospitais, fazendo cirurgias, exames, procedimentos etc., mas eu mesmo não tinha a menor noção de que aquilo era intrinsecamente relacionado a mim e para sempre. Antes daquele dia, uma ida ao hospital parecia ser um incidente fortuito e, apesar de ruim, esquecível. Dessa vez, entretanto, enquanto aguardava sentado no corredor, ocorreu-me que aquele tipo de espera não era novidade, havia acontecido outras vezes. Chamaram pelo meu nome – não o da minha avó ou o de outra pessoa –, levantei-me e fui encaminhado a um cubículo com uma cadeira e um suporte para apoiar o braço, de modo que ficasse estendido: “De novo?”, pensei. Então, caiu a ficha: aquilo era mais um dia de hospital.

Quando voltei pra casa, aquela consciência recém-adquirida ainda estava comigo. Olhei para a minha barriguinha de 6 anos e reparei que havia uma enorme cicatriz, e outra, e mais outra... Aquela consciência era definitiva, tinha vindo para ficar, tão para sempre como a minha doença.



quarta-feira, 16 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 417

Na sessão de hemodiálise do sábado, cheguei na clínica e me deparei com televisores ligados, exibindo o jogo daquele horário, Argentina X Nigéria. Eu não sou fã de futebol, só assisto à Copa, mas devo confessar que foi uma surpresa bastante agradável, uma excelente distração para quem está fazendo o tratamento: TV. Há quem consiga dormir – ou apenas cochilar – durante a sessão, mas existem alguns pacientes que passam o tempo todo sentados, de olhos abertos, pensando na vida, o que pode ser muito doloroso, às vezes. O som da TV é relaxante nesses casos; bom, pelo menos é o que eu penso, já que consigo ler e trabalhar com a TV ligada.

No andar em que dialiso (há três andares na minha clínica: os pacientes são tratados no térreo e no subsolo), há quatro boxes divididos em três seções (espaço físico) – uma seção fica logo na entrada, com um box; outra fica no meio, e tem dois boxes; e a terceira fica no fundo, com um box. No sábado, notei que havia duas TVs, deixando, portanto, uma seção sem o aparelho. Mas, isso só ocorreu naquele dia, pois, ontem, percebi que colocaram mais uma TV especialmente para os pacientes da seção dos fundos. A clínica não deixou ninguém de fora.

Nessa última sessão, estreia do Brasil na Copa, os enfermeiros estavam trajados de torcedores, alguns de uniforme azul, outros de verde. Quando vi aquilo, logo me ocorreu uma gracinha, minha contribuição para o clima festivo: eu disse bem alto “Cadê os enfermeiros?”. Uns poucos ouviram, e riram. Os pacientes – homens, na maioria – acompanhavam o jogo. Já os enfermeiros, conectavam os pacientes à máquina, verificavam a pressão, faziam tudo que deveriam fazer – profissionais trabalhando com a mesma atenção e seriedade de sempre, só que sem seus jalecos.

Quando a enfermeira de camiseta azul estampada “Hexa 2010” se aproximou com as agulhas e a gaze com álcool e as colocou em meu colo, prestes a me ligar, eu perguntei, brincando: “Quem é você?”. Ela abriu um belo sorriso. Depois, mediu a minha pressão, e eu fiquei aliviado por saber que havia baixado para 15X9, após um fim de semana com picos de hipertensão – 23X12 e por aí vai...

Serviram-nos para lanchar, além do costumeiro pão com manteiga e suco, pipoca para acompanhar o jogo. A clínica já estava decorada com bandeirinhas (verdes e amarelas, na onda) para a comemoração da festa junina, que será na próxima semana; com a Copa, então, quase nem parecia uma clínica de hemodiálise, exceto pela condição dos pacientes e o profissionalismo dos enfermeiros.

A Copa e a iniciativa do pessoal da clínica trouxeram algo de bom aos pacientes: uma quebra na rotina, o alívio da descontração.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Sessão de Hemodíálise 415





Este sou eu, muito abatido, contando nos dedos quantos dias faltavam para o meu primeiro transplante.

Eu havia acabado de fazer uma nefrectomia (retirada do meu segundo rim original, do lado direito – o primeiro havia sido retirado quando eu era bem pequeno, vide post “Sessão de Hemodiálise 410”) e ficara 3 dias dopado devido à dor e ao estresse causado ao corpo pela cirurgia, já que meu rim estava muito mal e começava a dar problemas sérios, pondo em risco a minha vida. A função do rim que me restara havia baixado para 10% apenas. Até o transplante, fiquei 5 meses na hemodiálise. Eu estava muito debilitado nessa foto. Na verdade, ela mostra como eu estava fragilizado após acumular anos e mais anos da doença – meu estado só piorara até então.

Antes de fazer a fístula para hemodiálise, a cirurgia de retirada do rim e toda a preparação necessária para o transplante, meu nefrologista escreveu, numa carta de encaminhamento: “Paciente com história de disfunção vesico-esfincteriana que resultou em reflexo vesico-uretral bilateral e necessidade de múltiplas cirurgias urológicas (vesicostomia, reimplante uretral, nefrectomia esquerda, ampliação vesical com íleo, nefrostomia). (...) Agora, a função renal caiu para valores críticos (...). Diante disto, optam por programar o preparo da criança para realização de [(1) confecção de fístula; (2) estudo de prováveis doadores; (3) nefrectomia direita; (4) transplante renal com doador vivo]. (...) Pelo exposto, torna-se claro que tais passos terapêuticos devam ser realizados com a maior urgência possível, devido ao quadro clínico urêmico presente”.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 414

Este post é dedicado a um amigo, o Celso Oshiro. Ele tinha IRC e morreu por causa de complicações da doença.

Não conheci o Celso através da clínica de hemodiálise: ele era da turma. Um certo dia, nos conhecemos e descobrimos que tínhamos em comum não só amigos, como também a mesma doença – a angústia de ser renal crônico. Naquela época, eu ainda tinha o meu segundo transplante e o Celso fazia diálise peritoneal (CAPD), o que acabou resultando na morte dele. A CAPD é extremamente perigosa, devido ao altíssimo risco de infecções e outras complicações. Falarei disso em um outro post.

Nós nos demos bem logo de cara, e nos tornamos grandes amigos. Apesar de não nos encontrarmos com frequência, conversávamos bastante pelo ICQ e pelo MSN. Falávamos sobre muitas coisas, não só sobre nossa condição. Ele era um cara muito inteligente, com um senso de humor extraordinário; a vivência de um ancião no corpo de um jovem. Um grande ser humano – um que valia a pena – morto pela diálise. Um amigo que virou estatística.

Certa ocasião, nós nos encontramos para botar a conversa em dia. Fomos até o apartamento de umas amigas dele, que moravam juntas e eram estudantes de enfermagem. O Celso era muito querido. Ele mancava, andava com cuidado, acho que o cateter em sua barriga o incomodava, pois eu o via torcer a cara, como se estivesse com indigestão. Naquele dia, nós nos despedimos com um abraço no metrô. Essa seria a última vez que eu o veria pessoalmente.

Algum tempo depois, ele sumiu da Internet. Então, recebi o recado de um amigo nosso, via MSN: “Tá sabendo do Celso?”. Ele havia morrido de infecção generalizada, causada por um problema no canal do cateter. Morreu com 28 anos, em 4 de setembro de 2008 – morto pela diálise peritoneal. Seu blog, Alma de Plástico, ficou no limbo da Internet.

domingo, 6 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 413

Há dois tipos de doadores: vivo ou cadáver.

No caso de doador cadáver:

Pacientes em hemodiálise cadastrados na fila de transplante devem esperar por um rim de doador cadáver. Nesse caso, o doador é uma pessoa que teve morte encefálica e cuja família autorizou a equipe médica a realizar a retirada de órgãos para transplante. Perdem-se muitos órgãos que poderiam ser usados para transplante e salvar pessoas da hemodiálise: a taxa de captação é de aproximadamente 10% apenas. É importante que as pessoas deixem claro em vida a seus familiares a intenção da doação após a morte. O tempo de espera na fila para o transplante é longo e muitas vezes o paciente não resiste – eu mesmo já estive em situação de alto risco de morte inúmeras vezes, com pressão alta rebelde em torno de 25 X 16, convulsões e cheguei inclusive a “morrer” durante uma das sessões de hd (vide post “Sessão de Hemodiálise 399”) –, pois depende da disponibilidade de um órgão compatível com o organismo do paciente que, não raramente, apresenta um complicador a mais: anticorpos específicos contra 60, 80, 90% da população em geral, o que reduz as chances de que apareça um doador cadáver compatível a praticamente zero. Assim, são vários os fatores que contribuem para as filas de espera de órgãos de doador cadáver cada vez maiores: captação de órgãos ínfima; famílias que não autorizam a doação do falecido, muitas vezes por falta de informação; redução de potenciais doadores cadáveres etc. É por isso que a maioria dos transplantes de rim no Brasil e no mundo é realizada com doadores vivos.

No caso de doador vivo:

Para se oferecer para doação, basta comunicar sua intenção ao receptor. Inicialmente, o potencial doador, que não precisa ser parente, deve seguir as mesmas regras do tipo sanguíneo para transfusão de sangue: o meu sangue é tipo O, então, eu só posso receber doação de quem tem também sangue tipo O; quem tem sangue do tipo A pode receber de quem tem sangue dos tipos A e O; sangue B pode receber de sangue B e O; e sangue AB pode receber de sangue A, B, AB e O. Os fatores Rh-positivo/negativo não influem nesse caso. Isso é o básico.

Caso doador e receptor possuam o mesmo tipo sanguíneo, o próximo passo é fazer um teste de Prova Cruzada, colhendo o sangue do doador e o do receptor, para averiguar o nível de compatibilidade entre os dois. Caso seja verificada a compatibilidade, o potencial doador terá seus rins avaliados por exames não invasivos (não dolorosos, portanto), como ultrassonografia e angioressonância, para checar qual deles será doado ao receptor – os nefrologistas selecionam para a doação o rim "menos bom" do doador, deixando o melhor com ele. Detalhe: todos os exames e o a cirurgia do transplante são bancados pelo Estado.

A seguir, são feitos os preparativos para o transplante renal. Doador e receptor são internados para a cirurgia. Dois dias depois, o doador sai do hospital, com alta – a recuperação do doador é bem rápida. O receptor permanece no hospital por mais alguns tempo, para se recuperar e fazer exames de acompanhamento, até estar em condições de levar uma vida normal, livre da hemodiálise.

As estatísticas mostram que, quando um paciente entra para a hemodiálise, a expectativa de vida que lhe resta é de menos de um quarto daquela da população saudável com a mesma idade.

Dados estatísticos, contudo, não são capazes de quantificar o sofrimento de quem está em diálise.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 412

Alguém uma vez chegou para mim e me disse que não era saudável que eu me visse como uma pessoa doente. Mas, creio que seja impossível ignorar que sou renal crônico. Só na semana que vem terei três consultas, todas elas relacionadas à minha doença, em dias intercalados à diálise: dentista, pois tenho de estar com os dentes em ordem, caso vá transplantar; cirurgião vascular, devido à fístula, que deverão operar nas próximas semanas para tentar diminuí-la; e neurologista, por causa das convulsões, espasmos e dores de cabeça que venho tendo. Sem contar as medicações que devo tomar diariamente – anti-hipertensivos, antianêmicos, anticonvulsivantes etc. –, controle da ingestão de líquido e alimentos e uma série de outras responsabilidades com as quais devo ficar atento. Meu compromisso com a saúde, aliás, com a falta de saúde, é diário.

As pessoas que têm saúde, por outro lado, só vão ao médico quando sentem dor, e algumas nem vão até que sintam muita dor. Isso é perigoso para elas, pois existem doenças silenciosas. A IRC é um bom exemplo de doença que chega sem se anunciar. É crucial que as pessoas que não têm problemas de saúde consultem um clínico geral, e façam exames para verificar se há alterações estranhas e relevantes no organismo. A dor causada pela picada de uma agulha, para retirar sangue para os exames, é muito pouca comparada ao sofrimento pelo qual se pode passar após a descoberta tardia de algum problema importante.

Por ser doente desde que me entendo por gente, e estar às voltas com hospitais, tratamentos, exames, intercorrências, sondas, agulhas – enfim, com todo o sofrimento físico e psicológico envolvido –, procurei sempre aproveitar a vida. Eu nem gosto de dormir, pois acredito ser perda de tempo (o que é diferente de ter insônia, que me impede de dormir mesmo quando estou muito cansado e quero dormir). Gosto de aproveitar o tempo que tenho, pois muito dele é consumido com a IRC.

Valorizo os momentos de alívio na vida, porque a realidade de um doente crônico é dura. O exemplo a seguir é um dos brindes da minha doença. Uma vez, logo após o segundo transplante, fui ao hospital para realizar um procedimento simples, tão simples que me disseram que nem precisaria de cirurgia ou anestesia. O procedimento consistia na retirada de um cateter do ureter (canal que liga o rim à bexiga), chamado duplo J, uma espécie de “alargador”, que fora colocado durante a cirurgia do transplante. Fiquei contente, pois significava que não ia doer, apesar de estar em dúvida sobre como retirariam aquilo de dentro do meu corpo. Mas, depois de ser preparado na mesa, descobri o que estavam prestes a fazer comigo: uma das experiências mais horripilantes pelas quais já passei na vida. O médico chegou com um cano com o diâmetro mais grosso do que um lápis, de uns vinte centímetros de comprimento, com uma pinça na ponta, e me perguntou: “Está pronto?”. Perguntei o que ele ia fazer com aquele negócio, e ele me respondeu que ia enfiar na minha uretra para retirar o duplo J. Fiquei angustiado, desesperado, transtornado em pensar na possibilidade daquele troço assustador entrar pelo meu pênis. Era de metal! Como ia chegar até o ureter, através da uretra!? Mas, segundos depois, estava realmente acontecendo: atravessava, na ignorância, a uretra, a bexiga, até o ureter, e voltava, do ureter, pela bexiga, pela uretra. E essa “tortura medieval” foi demorada. Um momento inesquecível, só que não daqueles em que se contempla um belo pôr do sol.

Acho que a única vantagem de se ter uma doença crônica é que se dá mais valor à vida. Mas acho que é um preço muito alto a pagar por essa consciência.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 411

Pacientes com IRC geralmente têm anemia, que é uma deficiência de células vermelhas do sangue (essas células são responsáveis pelo transporte de oxigênio do pulmão para todas as partes do corpo). Uma das tarefas do rim é regular a produção de eritropoietina, hormônio que aumenta o nível de glóbulos vermelhos no sangue. Quando uma pessoa não tem rins fica anêmica, e não tem a energia necessária para cumprir suas tarefas diárias.

A maioria dos pacientes em tratamento de hemodiálise deve tomar uma reposição de eritropoietina a cada sessão, pois, além de não possuírem seus rins para produzir o hormônio, perde-se muito sangue na máquina (o sangue vivo é devolvido ao paciente, empurrado com soro, mas sempre fica um pouco que adere nos tubos e cateteres). A eritropoietina deve ser administrada via subcutânea, portanto, não pode ser aplicada pela máquina, como o gluconato de cálcio de que já falei anteriormente, assim, o paciente tem de receber mais uma picada, dolorosíssima (não pela picada em si, mas por causa do líquido), no braço, na barriga ou na coxa. Eu mesmo me aplico a eritropoietina na barriga, pois, dessa forma, posso controlar a velocidade com que o líquido entra no meu corpo.

Outra coisa que contribui para a anemia são os sangramentos do pós-diálise, que ocorrem com certa frequência. Sempre que volto da sessão eu troco os curativos, porque os da diálise esmagam a fístula (os furos devem estar bem pressionados quando se retiram as agulhas, pois a pressão do sangue é muito forte e pode causar os vazamentos), e podem até “enforcá-la”, fazendo-a parar. Então, já em casa, com o sangue nos furos coagulado, faço a substituição por band-aids.

Hoje, porém, ao voltar da diálise e chegar em casa, enquanto preparava minha refeição no micro-ondas, um dos furos em meu braço vazou pelo band-aid. Percebi que isso ocorria quando senti o sangue escorrer rapidamente pelo braço. Fui correndo para o banheiro pegar gaze para detê-lo (mantenho pacotes de gaze à mão, na gaveta do banheiro, para esses casos), mas, até abrir o pacote e retirar a gaze, havia perdido muito sangue.