sábado, 28 de agosto de 2010

Sessão de Hemodiálise 446

Balanço da Insuficiência Renal Crônica na minha vida: cerca de 25 cirurgias (vesicostomias, ureterostomias, nefrectomias, ureteroplastias, vesicoplastias, íleovesicoplastias, nefrostomias, transplantes renais, entre outras), 13 cicatrizes principais – sem contar as que estão quase imperceptíveis, pois tenho uma cicatrização muito boa, capaz de praticamente apagar todas as marcas cirúrgicas da minha infância – e perto de 200 pontos externos. Há muitos pontos internos também, ou pelo menos havia, já que, alguns anos atrás, fui submetido a um procedimento cirúrgico com anestesia geral somente para retirar os fios dos pontos que foram se acumulando em meu organismo. A cicatriz mais antiga que ainda pode ser notada, e também a maior, é de um corte que inicia logo abaixo do plexo solar, atravessa meu umbigo (que já foi reconstruído algumas vezes) e termina na região pubiana, quase na base do pênis: aproximadamente 40 pontos.

As cicatrizes dessa guerra não são apenas evidenciadas pelos cortes, mas também pelas perfurações. Os furos são invasões que também deixam marcas. Só pelas agulhas de hemodiálise, aquelas calibrosas, levando-se em conta que são duas espetadas por sessão e que eu já fiz o tratamento por alguns meses em 1995, o número passa de 1.000. Outras agulhadas são impossíveis de contabilizar, nem dá pra fazer uma estimativa. Foram tantas ao longo da vida que, para se ter uma ideia, na dobra do meu braço direito – no qual as veias estão muito judiadas porque é o braço usado pra tudo: coleta de sangue, soro, medicações, transfusões etc., já que não podem usar o braço que tem a fístula – há uma cicatriz formada pela sucessão de perfurações.

Bisturis e agulhas produzem cicatrizes no corpo e na alma. São 30 anos de doença, minha vida toda, não conheço outra condição senão esta em que estou inserido: hospitais, tratamentos, remédios, falta de saúde, enfim. No meu caso, um transplante é o mais próximo que se tem de uma vida normal, com qualidade, e, se pensarmos que essa é uma doença que, diferente de outras que são mais agressivas e mortais a curtíssimo prazo, pode subjugar os pacientes de “mais sorte”, se é que se pode dizer assim, indefinidamente, cozinhando-os a fogo lento, já que existem terapias substitutivas da função renal, podemos concluir que nunca será prioridade na busca por uma cura.

Enfrentar a hemodiálise é uma batalha. Entrar na sessão e sair dela bem (dentro do possível), ou, pelo menos, sair vivo, já é uma vitória para um renal crônico. Ganha-se uma batalha, mas a guerra está perdida.







domingo, 22 de agosto de 2010

Sessão de Hemodiálise 445

Nestes últimos dias estive fora do ar por causa de uma febre que chegou a 39,5 graus, causada por uma infecção, por isso deixei de postar aqui. Mal conseguia levantar da cama, tive ânsia de vômito (vomitei algumas vezes) e uma dor de cabeça muito forte que durou cinco dias consecutivos, tudo isso dificultando minha concentração. Não consegui escrever, e a contagem de sessões ficou defasada. Atrasei também meu trabalho freelancer, um acúmulo que espremeu ainda mais o exíguo prazo com que trabalha um revisor de texto (ver post Sessão de Hemodiálise 422).

Com este post, atualizo não só esses últimos dias que fiquei sem postar, como os que havia pulado antes disso, totalizando 7 sessões, e retomo a atividade do blog. Então, até a próxima postagem!

sábado, 14 de agosto de 2010

Sessão de Hemodiálise 437

O amor tem um poder quase milagroso. O interesse e o incentivo das pessoas à sua volta, quando se é doente, muitas vezes significam a diferença entre a vida e a morte. Do meu nascimento até a adolescência, contei com meus avós, presentes e zelosos. Meu avô, já com Alzheimer, no final da vida, esqueceu-se de tudo, menos de mim e de meu estado de saúde. Abria a porta do meu quarto literalmente de 5 em 5 minutos (pois se esquecia de que já o havia feito) e me perguntava: “Gui, você está bem?”. Também tive a bênção de contar com a proteção de um anjo que nem da família era: Regina Maria (que teve o elegante nome substituído desde jovem por Chiquinha, simplesmente porque tinha um irmão apelidado de Chico) já trabalhava na casa da minha avó quando eu nasci, e foi quem praticamente me criou. Meus avós faleceram já há algum tempo, e essa senhora, cujo carinho diário, atento e generoso foi sempre o meu porto seguro, se aposentou. Minha história – repleta de dores, decepções, incertezas, sofrimento, saudade – tem todos os ingredientes de um bom dramalhão mexicano. Então, conforme o rumo que o desenrolar dos acontecimentos for ditando, continuarei postando aqui os “capítulos” dessa novela pessoal, alguns em flashback, outros relativos às dificuldades atuais, para os fiéis espectadores que têm me acompanhado desde o início. Obrigado pelo ibope!

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Sessão de Hemodiálise 436

Outro dia, na sala de espera do consultório da médica da equipe que trata de mim agora, conversei com um senhor de quarenta e tantos anos, que havia chegado antes de mim. Notei que ele tinha uma fístula (quase tão dilatada quanto a minha) e que, portanto, fazia hemodiálise. Passei-lhe o endereço do meu blog, ele se interessou bastante. Continuamos a falar e, conversa vai, conversa vem, ele se queixou amargamente de sua família, mais especificamente de sua irmã, que, embora tenha espalhado para todo mundo que doaria um rim para ele, para ficar bem na fita e ser admirada, sempre foi enrolando, adiando, ganhando tempo. Quando não dava mais para adiar, mesmo já tendo certa idade e sendo mãe de um adolescente, apareceu grávida, um pretexto óbvio para evitar a doação. Como ele se queixou não apenas disso, mas também de que ela passou a perna nele em questões de dinheiro, cheguei à conclusão que as histórias se repetem num repertório não muito amplo nesse universo particularíssimo da insuficiência renal. Particularíssimo porque é uma doença que pode ser contornada com um transplante entre vivos; que pode tanto resultar numa morte rápida, numa longa e dolorosa agonia de uma semivida na hemodiálise, ou numa expectativa de vida quase idêntica a de alguém são. Ou seja, é mortal e ao mesmo tempo não é, dependendo das circunstâncias da vida de determinado indivíduo com IRC. Num extremo, tanto pode revelar o caráter heroico e desprendido de um amigo ou amiga que, sem vínculo familiar (e, por conseguinte, sem a obrigação moral de doar), dispõe-se a doar um rim por verdadeiro e desinteressado amor; como, no outro extremo, pode trazer à tona o lado negro do ser humano, em que uma doença crônica num familiar, além de provocar indiferença ao seu sofrimento, ainda é oportunidade praticamente de um assassinato “branco”, em que não se pode provar que houve um crime, mas em que se elimina alguém da partilha da herança, muito convenientemente, apenas pela recusa em doar um órgão e prolongar a vida do parente. Um paciente renal terminal, se não é muito amado pelos familiares, é visto como um estorvo, constantemente desrespeitado, como se fosse alguém que já deveria ter morrido e ainda não morreu, como se tivesse o “prazo de validade vencido”, alguém que não significa nada, apenas gastos, mesmo quando a situação financeira da família é excelente.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Sessão de Hemodiálise 435

Para quem gosta de seriados, há um que trata especificamente de transplantes. Chama-se Three Rivers, uma produção da CBS. O nome mais conhecido do elenco é o protagonista Alex O'Loughlin, que interpreta um experiente cirurgião do fictício hospital especializado em transplantes que dá nome à série. Em cada episódio há sempre a preocupação de passar os três pontos de vista diferentes: o do doador vivo (ou dos familiares do doador cadáver), o de todo o staff médico encarregado dos transplantes, e o dos receptores. Trata-se de uma iniciativa interessante e bastante útil para desmistificar tabus, derrubar preconceitos infundados, esclarecer dúvidas gerais. O problema é que há tantos seriados “médicos”, que Three Rivers pode passar por apenas mais um desses, e não conquistar a atenção do público já um pouco cansado de E.R. e afins.