sexta-feira, 4 de junho de 2010

Sessão de Hemodiálise 412

Alguém uma vez chegou para mim e me disse que não era saudável que eu me visse como uma pessoa doente. Mas, creio que seja impossível ignorar que sou renal crônico. Só na semana que vem terei três consultas, todas elas relacionadas à minha doença, em dias intercalados à diálise: dentista, pois tenho de estar com os dentes em ordem, caso vá transplantar; cirurgião vascular, devido à fístula, que deverão operar nas próximas semanas para tentar diminuí-la; e neurologista, por causa das convulsões, espasmos e dores de cabeça que venho tendo. Sem contar as medicações que devo tomar diariamente – anti-hipertensivos, antianêmicos, anticonvulsivantes etc. –, controle da ingestão de líquido e alimentos e uma série de outras responsabilidades com as quais devo ficar atento. Meu compromisso com a saúde, aliás, com a falta de saúde, é diário.

As pessoas que têm saúde, por outro lado, só vão ao médico quando sentem dor, e algumas nem vão até que sintam muita dor. Isso é perigoso para elas, pois existem doenças silenciosas. A IRC é um bom exemplo de doença que chega sem se anunciar. É crucial que as pessoas que não têm problemas de saúde consultem um clínico geral, e façam exames para verificar se há alterações estranhas e relevantes no organismo. A dor causada pela picada de uma agulha, para retirar sangue para os exames, é muito pouca comparada ao sofrimento pelo qual se pode passar após a descoberta tardia de algum problema importante.

Por ser doente desde que me entendo por gente, e estar às voltas com hospitais, tratamentos, exames, intercorrências, sondas, agulhas – enfim, com todo o sofrimento físico e psicológico envolvido –, procurei sempre aproveitar a vida. Eu nem gosto de dormir, pois acredito ser perda de tempo (o que é diferente de ter insônia, que me impede de dormir mesmo quando estou muito cansado e quero dormir). Gosto de aproveitar o tempo que tenho, pois muito dele é consumido com a IRC.

Valorizo os momentos de alívio na vida, porque a realidade de um doente crônico é dura. O exemplo a seguir é um dos brindes da minha doença. Uma vez, logo após o segundo transplante, fui ao hospital para realizar um procedimento simples, tão simples que me disseram que nem precisaria de cirurgia ou anestesia. O procedimento consistia na retirada de um cateter do ureter (canal que liga o rim à bexiga), chamado duplo J, uma espécie de “alargador”, que fora colocado durante a cirurgia do transplante. Fiquei contente, pois significava que não ia doer, apesar de estar em dúvida sobre como retirariam aquilo de dentro do meu corpo. Mas, depois de ser preparado na mesa, descobri o que estavam prestes a fazer comigo: uma das experiências mais horripilantes pelas quais já passei na vida. O médico chegou com um cano com o diâmetro mais grosso do que um lápis, de uns vinte centímetros de comprimento, com uma pinça na ponta, e me perguntou: “Está pronto?”. Perguntei o que ele ia fazer com aquele negócio, e ele me respondeu que ia enfiar na minha uretra para retirar o duplo J. Fiquei angustiado, desesperado, transtornado em pensar na possibilidade daquele troço assustador entrar pelo meu pênis. Era de metal! Como ia chegar até o ureter, através da uretra!? Mas, segundos depois, estava realmente acontecendo: atravessava, na ignorância, a uretra, a bexiga, até o ureter, e voltava, do ureter, pela bexiga, pela uretra. E essa “tortura medieval” foi demorada. Um momento inesquecível, só que não daqueles em que se contempla um belo pôr do sol.

Acho que a única vantagem de se ter uma doença crônica é que se dá mais valor à vida. Mas acho que é um preço muito alto a pagar por essa consciência.

3 comentários:

  1. Força, mano, força.

    Mb.

    ResponderExcluir
  2. Shepa, que lindo seu blog. Extremamente útil. Poucas pessoas falam tão bem de algo tão triste. Não suma!
    Beijos.

    Daia

    ResponderExcluir
  3. Por acaso "encontrei você",comecei a ler e não consegui parar,não sei te dizer o que passava na minha mente enquanto lia, era tudo misturado,sentimento de responsabilidade social,admiração,choque de realidade,pois é duro ouvir minha própria vos lendo a tua realidade que como vc mesmo disse as pensam saber como é,mas nem imaginam,digo isso pois pensava o mesmo.Você além de inteligente é muito valente e isso pra mim é ser Herói.

    ResponderExcluir