domingo, 16 de janeiro de 2011

Sessão de Hemodiálise 502



Eu era tão pequeno quando os meus pais se separaram que nem me lembro deles juntos. Sei, no entanto, que eu e minhas duas irmãs crescemos ouvindo uma versão unilateral sobre a separação, carregada de ressentimento e vitimização. Que resultou, como não poderia deixar de ser quando uma história é martelada à exaustão em mentes virgens e impressionáveis, em um alheamento dos filhos em relação ao pai. No caso de minha irmã mais velha, bem mais do que isso: simplesmente não fala com ele. Minha outra irmã ainda fala uma vez na vida e outra na morte, mas, como adota com todas as pessoas e em todas as situações uma civilidade estudada, nunca se sabe o que realmente pensa. Eu mesmo já fui muito ludibriado por essa, digamos assim, diplomacia dela. Contudo, como na maior parte das vezes as atitudes não acompanham o discurso (o que descobri nos últimos tempos e da pior maneira), chega um dia que, por mais ingênuo e crédulo que se seja, a ficha cai.

Quando perdi o primeiro transplante, deveria ter ficado um tempo na hemodiálise antes de fazer outro. O organismo estava um tanto sensível. Um segundo transplante assim tão em cima de uma rejeição me parece hoje em dia muito precipitado. E por que foi feito, então? Há quase doze anos, com certeza, sabia-se menos sobre transplantes do que hoje. Além disso, meu pai já havia sido testado junto com a minha mãe para o primeiro e a equipe médica, que era a mesma (a inicial; atualmente, estou sendo acompanhado por uma terceira equipe), já tinha, portanto, praticamente tudo que precisava. Last but not least, rolou uma certa pressão de minha mãe e irmãs para a realização do segundo transplante. E não exatamente, devo dizer, por estarem preocupadas com a minha saúde. “Como assim?”, poderia se perguntar quem me lê, achando-me maldoso ou até paranoico. Respondo com a tranquilidade que me dão as evidências de então e acontecimentos recentes: o meu segundo transplante parece ter sido usado como uma espécie de punição ao meu pai, do tipo “se a mamãe doou, ele tem de doar também”. Lembro-me que minha irmã diplomática, a única que falava com ele, foi procurá-lo para pedir que ele doasse. E até hoje ela se diverte relembrando com a outra irmã e a mamãe, que meu pai, “que morre de medo de hospital”, segundo elas, não teve saída senão se apresentar aos médicos. Se fosse zelo pela minha saúde, preocupação com a minha sobrevivência, como explicar que hoje, que eu preciso de um transplante mais do que nunca por causa do aneurisma na fístula e o problema no coração (ver Sessão de Hemodiálise 400), cheguei a implorar às minhas irmãs que me doassem e... nada? Minha mãe se opôs terminantemente a que eu fizesse um novo transplante (“como assim?” poderiam perguntar de novo, e eu esclarecerei adiante); minhas irmãs, ou por que a ouviram e obedeceram, ou por que também não fazem questão, mesmo podendo, de me livrar do sofrimento e do perigo da hemodiálise, nem de prolongar minha vida, foram colocando obstáculos sucessivos até eu perceber que não doariam e finalmente desistir. No princípio, recebia uma enxurrada de e-mails contestadores, em que queriam que eu “explicasse” por que precisava de um transplante, como se já não soubessem. Depois de receberem minhas pacientes respostas até com fotos da fístula e a opinião das médicas, muito contrariadas e colocando um “preço” na possibilidade de me doarem, coletaram sangue para o exame inicial de compatibilidade (preço entre aspas porque não se trata, nesse caso, de um valor em dinheiro, embora elas o prezem tanto – bem mais, eu diria, do que prezam o irmão doente crônico, tanto é que me fizeram assinar os papéis da venda do belo apartamento que meu avô paterno doou para nós três antes de falecer, e dividiram o dinheiro entre elas duas apenas, alguns anos atrás; mas isso é assunto, talvez, para um próximo post).

As duas são compatíveis, se eu fizer um tratamento primeiro. O hospital em que fazia o acompanhamento antes de perder o segundo transplante não faz esse tipo de tratamento, a dessensibilização. Além disso, não aceita mais “casos complicados”: a diretriz vigente é a de se ocupar principalmente de primeiros transplantes, para realizar o maior número possível de cirurgias com rapidez e alto índice de sucesso – casos complicados demandam mais tempo com apenas um paciente – e cumprir metas. Expliquei-lhes isso tudo. Minhas irmãs se agarraram à negativa desse hospital e mudaram de tática, passando a dizer que eu não poderia fazer um novo transplante, nunca, em lugar algum. O que não é absolutamente verdade e elas também sabem muito bem disso. Mudei de equipe, para um hospital que dispõe desse tratamento, e onde fui extremamente bem acolhido. Minhas irmãs e mãe se opuseram à mudança de hospital. Se o atual hospital e o acompanhamento do meu caso são excelentes, qual a razão disso? Acaso deveria acatar a orientação do anterior, conformar-me, e permanecer condenado à hemodiálise? A mim não interessaria isso. Só posso supor que interessaria a elas. Contra-argumentei com a opinião de minha atual médica, uma autoridade incontestável na área de transplantes renais, pioneira da dessensibilização no Brasil, uma sumidade de renome internacional. Minhas irmãs quiseram conhecê-la para por à prova o que eu dizia e ouviram dela o que não queriam: o transplante não apenas é viável, como indicado, e não seria nenhum bicho-de-sete-cabeças; minha irmã mais velha, aquela que me chama de Sr. Coitadinho, no auge da frustração, pois com certeza esperava ouvir que o transplante não seria possível, chegou a ironizar a médica depois, referindo-se a ela num e-mail, de maneira desdenhosa, como “a sua médica maravilhosa”... Nessa primeira (e única) entrevista, entretanto, a doutora solicitou a elas mais alguns testes simples, como exames de sangue, de urina e ultrassom, e elas os fizeram. Entretanto, sem a menor intenção de prosseguir com a doação. Em vez de me entregarem os resultados, retiveram-nos como isca, esperando que eu, que tanto preciso de um transplante, vá até elas buscá-los e seja obrigado a me encontrar com a minha mãe e com elas duas novamente, só que não em público, desta vez entre quatro paredes, para elas tentarem me coagir a fazer coisas que não quero, na base dos gritos, discussões e ameaças. Ou seja, usaram a possibilidade (não a intenção) de me doar um rim como uma cenoura na frente do burro, como moeda de troca, do tipo “você quer mesmo um rim, então...”. Querem me forçar, entre outras coisas, a terminar meu namoro com minha namorada (que é uma pessoa sensacional, que eu amo profundamente, cuja dedicação a mim e o zelo por minha saúde são testemunhados por todos os meus amigos, e que – não tenho a menor dúvida disso – já teria me doado um rim há séculos se nossos tipos sanguíneos fossem compatíveis) simplesmente por que a minha mãe queria que ela me bancasse e minha namorada não tem condições de fazê-lo (sem contar o disparate que é isso, pois minha mãe tem posses e um emprego estável e a obrigação legal para comigo, enquanto eu e minha namorada não temos vínculo algum); querem me forçar a voltar a falar com a minha mãe, querem que eu, com 30 anos na cara, me submeta a ser tratado novamente como sempre fui tratado por elas, como um moleque, com autoritarismo e sem o menor respeito por mim: já que dependo delas para certas coisas, exigem subserviência. Querem me forçar a achar que elas são ótimas pessoas e que se preocupam comigo e com a minha saúde (creio eu, para que a imagem que os outros fazem delas não fique arranhada), quando os seus atos para comigo desmentem isso a todo instante e descaradamente. O grau de destempero de minha mãe chegou a tal ponto, que ela inventou coisas cabeludas de mim para os meus primos a fim de lhes conquistar a solidariedade (entre as quais, que eu estava falando mal neste blog dos nossos avós falecidos, justamente o contrário do que foi a comovida homenagem que fiz a eles e a Chiquinha, no post 437, como todos podem ver), incitando-os à violência cega contra mim e minha namorada. O meu primo mais velho, que não vejo há muito tempo, pois não moramos no mesmo Estado, enrolado dessa forma por ela, foi longe demais e escreveu que viria a São Paulo me surrar, “estapear”, e me dar um recado, que seria surrar a minha namorada, que ele chamou, sem conhecê-la, de “FDP maldita”, com base apenas nas mentiras despeitadas e rancorosas que ouviu. E ainda se colocou à disposição de minha mãe e irmãs “pra fazer o que tiver que ser feito, quando e como quiserem, se precisarem de mim”, como num filme de máfia. Diante de tais ameaças, fui obrigado a nos proteger e registrei um BO contra minha mãe e meu primo na 36ª DP. É por isso que não volto a me encontrar com elas três pessoalmente: com a saúde cada vez mais frágil, hipertenso como estou, não posso ficar metido em discussões insanas, sendo atacado e agredido verbalmente ou quem sabe até mesmo fisicamente, como o episódio das ameaças graves que acabo de relatar demonstra ser este um recurso que elas não descartam.

Mas, voltando a falar da época em que minhas irmãs chegaram a fazer os primeiros testes com objetivos outros que não a doação no final (de doação se pode desistir até na mesa de operação), o fato é que as duas irmãs, então, recomeçaram com o número habitual a que já me acostumei ao longo dos anos, que consiste, como em certos filmes policiais, de uma bancar o tira mau (a mais velha) e a outra, o tira bonzinho (a diplomática), antes de finalmente ficar claro para mim, que não me doarão um rim, não importa quanto eu precise. Depois do post em que reproduzi uma conversa minha com uma amiga, a Renata, em que mencionei que elas haviam sido testadas, porém não com a intenção de doar, elas começaram a protestar, dizendo que é mentira, que sempre estiveram à disposição para doar e tal, frisando sempre, entretanto, que é só eu ir lá buscar os resultados com elas. Não me iludo mais. Ainda mais que a doação de órgãos é essencialmente um ato de amor e generosidade. Quem deseja doar mesmo, procura espontaneamente o receptor e se oferece. Nada parecido com essa verdadeira batalha de e-mails, acusações, chantagens, argumentações. Essa longa espera que deu em nada foi muito cruel e angustiante para mim e desgastou minha saúde ainda mais.

Curioso que tenham forçado meu pai a doar tão rapidamente e quando chega a vez de as duas me ajudarem, o que tenho é um show de frieza, cinismo, mentiras, agressividade, engabelação – minha irmã diplomática, no início, chegou a me enviar um e-mail em que apelava até para frase tirada de livro de autoajuda, na expectativa de que pudesse negar a doação e ao mesmo tempo continuar bem na fita comigo e perante a sociedade (pois se preocupa muito em ser politicamente correta), e dava a “explicação” de que, na verdade, eu não preciso de um transplante, preciso é perdoar para me sentir melhor... Em outra ocasião, já me havia dito, também, que sonhara comigo, que me viu morrendo por causa da fístula (então, significa que ela sabe muito bem como a fístula com aneurisma é perigosa), mas não por uma questão física: o que me levava à morte em seu sonho eram os meus sentimentos, que precisavam mudar... Minha irmã mais velha, aquela que me chamou de filho da puta em caixa alta (ver post 449), nem chegou propriamente a tentar disfarçar que jamais teve a intenção de me doar um rim nos e-mails que me escreveu com a costumeira meiguice...

Mas, voltando ao assunto deste post, o segundo transplante. Meu pai fez bonito. Doou um rim para mim, sem hesitação: veio de outra cidade, fez a cirurgia e, dois dias depois, teve alta e deixou o hospital. Doou pelo meu bem, por instinto paterno, porque eu precisava. Com a mesma presteza e naturalidade com que ajudaria a levantar alguém que tivesse levado um tombo.

Infelizmente, talvez porque o segundo transplante tenha sido realizado muito em cima da perda do primeiro, sofri uma rejeição aguda logo de cara. Ela foi contornada, mas, quando isso acontece é uma espécie de condenação, a gente sabe que o órgão está com os dias contados, mesmo que desta vez, já adulto, com outra cabeça, tenha tomado a medicação corretamente. Não bastasse isso, tempos depois fui submetido a uma biópsia do rim transplantado no hospital da minha primeira equipe de acompanhamento e tive uma hemorragia severa, que danificou ainda mais o enxerto. Diga-se francamente, fizeram uma “barbeiragem” que me deixou entre a vida e a morte por longas e angustiantes horas, até que fosse autorizada uma cirurgia para reparação (e minha mãe não só sabe disso como estava lá, tanto no episódio da rejeição aguda quanto na hemorragia resultante da desastrada biópsia, razão pela qual fico ainda mais estarrecido com a afirmação dela de que eu “joguei fora” dois transplantes; que é repetida roboticamente por minhas irmãs, com a mesma cara de pau; e todas as três têm formação superior, ou seja, ignorância não serviria para desculpá-las por tal afirmação). Mesmo assim, o segundo transplante ainda durou oito anos, um verdadeiro recorde dadas as circunstâncias. Os médicos até se admiravam com a resistência do órgão doado por meu pai.

Minha mãe se opõe a que eu faça um novo transplante, penso eu, como forma de castigo, pois, segundo ela, já tive duas chances e “de propósito ou não” (!)... joguei-as fora! Como se a perda dos enxertos houvesse sido vontade ou culpa minha nos dois primeiros transplantes e ela fosse alguma divindade implacável com o direito de decidir sobre a minha vida ou morte. Nem preciso comentar sobre o fracasso do primeiro transplante, pois já relatei no post 460 como as coisas se passaram e a responsabilidade dela nisso. E, tendo ela testemunhado o que me aconteceu no segundo, o que me deixa pasmo é minha mãe ter a desfaçatez (para dizer o mínimo) de me escrever tais coisas. A meu ver, talvez sua verdadeira motivação seja sabotar a independência que um novo transplante me proporcionaria.

Agora espero por um terceiro transplante que, com toda certeza, não virá da família. Minhas irmãs se comportaram da forma que descrevi, e uma tia minha – não por acaso irmã da minha mãe – que sempre disse, quando eu ainda era transplantado, que não pensaria duas vezes em me doar um rim caso eu viesse a precisar, quando escrevi para ela (ingênuo que sou), explicando que chegara a hora, que realmente estou precisando com urgência de um transplante por todas as razões que venho expondo no blog (no qual ela disse que entrava) e perguntando se ela estaria disposta a fazer o teste de compatibilidade para me doar um rim, conforme a vontade que sempre manifestou, respondeu-me que esperava que ainda me restasse tempo para eu “trabalhar” o meu “egoísmo mórbido”. Agora sou eu que pergunto: "Como assim?".

6 comentários:

  1. Essa sua tia vai reencarnar como besouro rola-bosta...

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  2. Gui, sua história parece um filme, um filme triste. Realmente quando precisamos de um grande favor é que vemos quem é quem, e que o amor não nasce das obrigações e sim das afinidades. Tios, irmãos e mãe, que todos sacralizam tanto, as vezes não nos servem tanto quanto um verdadeiro amigo. No meu tx, tive a ajuda de uma amiga, que me visitou TODOS os dias, que me deu banho e que nunca exigiu nada em troca. Isso sim é amor.

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  3. Guilherme, uma pessoa com o seu histórico está amparada por lei. Contrate um advogado para garantir seus direitos. Se precisar de ajuda para pagar, pode contar comigo. Abraços,

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  4. Toda vez que leio seu blog fico triste por perceber como ainda tem tanta gente má no mundo e nem imagino como é viver em uma familia como a sua. Ser renal com uma familia que te ampara já é dificil, agora ser renal e ter uma familia dessas... eu não sei nem o que comentar, só posso dizer que me revolta, e muito. Força Gui, desejo que seu transplante chegue rapido, antes mesmo que o meu, você merece sair desse sufoco o quanto antes. Se cuida.

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  5. Ola Guilherme. Parabéns pelo blog,por dividir conosco suas emoçoes e incentivar a doação de orgãos. Com certeza absoluta o seu terceiro transplante vai dar mais do que certo. Parabéns pelo talento. Sempre passo por aqui, meu marido faz hemodiálise também e seu blog me ajuda a entender como ele se sente e me ajuda a lidar com os sentimentos pois acredito que a doença dele também é minha , pois quando amamos alguém o que afeta a pessoa que amamos também afeta a nós. Vou esperar uma postagem contando do sucesso do seu futuro transplante. Um abraço.

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  6. Guilherme, encontrei o seu blog enquanto pesquisava umas imagens para explicar o que é uma fistula para uns familiares. Estou de saida para a dialise, por isso vou dizer muito rapidamente: as suas palavras poderiam ser as minhas. Tenho 28 anos e faço dialise há 2, tenho uma fistula no mesmo sitio que voce e novamente, as suas palavras podiam ser as minhas.

    como eu o compreendo. força e boa sessao!
    PS: vivo alem mar, em terras lusas :)

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