sábado, 30 de outubro de 2010

Sessão de Hemodiálise 460

Como eu perdi o meu primeiro transplante (Continuação do post 458)

Então, como comentei no penúltimo post, Sessão de Hemodiálise 458, aos 15 anos eu tinha, notoriamente, o desenvolvimento emocional de uma criança de 10. Fiz o meu primeiro transplante renal nessa época, em dezembro de 1995 (ver fotos no post 458). A equipe médica que me acompanhava na ocasião testou meus pais, divorciados, e acabou escolhendo minha mãe como doadora. Depois de passar três semanas no hospital, recuperando-me, tive alta e fui para casa com uma perspectiva de vida como nunca tivera, a oportunidade de finalmente conhecer o que é ser uma pessoa saudável. Sentindo-me “curado”, em outras palavras, da minha enfermidade.

Meses depois que me doou o rim, minha mãe, que é médica-veterinária, foi tratar da vida dela, indo morar sozinha com o meu padrasto (citado no post 448) e me deixou com os meus avós, que, embora maravilhosos, naquele momento começavam já a apresentar sinais de senilidade e debilidade física (inclusive, eu ajudava a limpar as escaras da minha avó, presa ao leito), e a Chiquinha, uma alma de ouro, porém, humilde e iletrada, incapaz, portanto, de compreender a complexidade da medicação imunossupressora que eu deveria tomar após o transplante (falo sobre eles no post 437). Assim, fiquei com a responsabilidade de tomar sozinho os remédios para a conservação do rim.

Ora, que responsabilidade pode ter uma criança para coisa tão importante? O próprio nefrologista que recomendou meu transplante se referiu a mim na ocasião como criança (ver carta de encaminhamento, reproduzida no post 415). E, mesmo não se levando em conta a minha patente imaturidade, e considerando-se apenas a minha idade cronológica, ainda assim, se naquela época eu não era apto a dirigir, votar, casar, assinar cheque nem nada importante, muito menos tinha eu condições de assumir sozinho essa vital incumbência, sem a vigilância do adulto responsável por mim – no caso, minha mãe –, cuja responsabilidade deveria, é lógico, englobar minha integridade física e, em última análise, minha própria sobrevivência. Definitivamente, não era tarefa para ser deixada nas mãos de uma criança que não entendia direito que o transplante não era a cura, e sim mais um tratamento (infinitamente melhor do que a hemodiálise em todos os sentidos – principalmente porque possibilita uma expectativa de vida quase equivalente à de uma pessoa sã –, mas, ainda assim, um tratamento), e que aqueles “remedinhos” não eram simples vitaminas ou analgésicos, que podem ser esquecidos que não faz mal. Naquele tempo, o remédio mais importante, Sandimum, que evitaria a rejeição, era ainda mais complicado de ingerir, pois era líquido e tinha um gosto ruim, e os 2 ml que eu tomava da droga precisavam ser dosados com precisão, com uma seringa especial, que vinha junto com ela. A medicação imunossupressora é algo tão sério que se a pessoa não segue religiosamente a quantidade e o horário, já coloca o enxerto em risco. Se esquecer de tomar alguns dias, então, já era. Tem início a perda irreversível do rim transplantado, a rejeição por “não aderência à medicação”, como chamam os médicos.

E foi o que aconteceu comigo: estava tão deslumbrado com o que eu achava ser a cura que me iludi, pensando que finalmente era um menino como todos os outros, como os meus amigos. Por falta da vigilância de um adulto capaz, perdi o rim transplantado, tão precioso, que poderia estar comigo até hoje. E essa perda resultou numa deterioração progressiva de minha saúde – sendo que o mais grave foi o comprometimento sério de meu coração ao longo dos anos – e desencadeou várias complicações que colocam minha vida em risco continuamente, ainda mais agora que estou na hemodiálise. Acho que minha mãe pensou que, ao doar o rim, seu papel já estava cumprido, que já havia feito a parte dela; mas, não creio que toda e qualquer mãe pensaria ou agiria da mesma forma. Às vezes, fico vendo o caso de mães de filhos com paralisia cerebral, por exemplo, mulheres com muito menos instrução e condições do que ela, que se dedicam a cuidar dos filhos com desvelo, muitas vezes carregando no colo os filhos já adultos, pra cima e pra baixo, pegando várias conduções, acompanhando-os em seu tratamento; mães em situações muitíssimo mais difíceis do que a dela e que mesmo assim nunca desistem dos filhos. No caso de minha mãe seria tão fácil me ajudar a tomar a medicação corretamente (2 vezes por dia, apenas) e ela não fez isso... Fico imaginando se eu fosse um desses casos que citei. A verdade é que, no final das contas, essa postura dela acabou resultando no desperdício de um transplante excelente, em muito sofrimento e infelicidade para mim durante esses anos todos, e na redução de minha expectativa de vida. E hoje vivo o drama da hemodiálise e nem precisaria necessariamente estar nesta situação – e por mais de uma razão: para começar, se minha mãe fosse mais atenta, eu sequer seria renal crônico (ver post 410). Mas isso é outra história, que ficou no passado. O problema é que essas coisas continuam acontecendo; recentemente, depois que minha saúde se agravou e eu comecei a sofrer convulsões e tive uma parada cardíaca, precisando ser ressuscitado, ela teve a frieza de cortar deliberadamente o meu plano de saúde que me garantia atendimento de emergência nos hospitais e remoção por ambulância, além de exames mais complexos e consultas – e não por falta de dinheiro, pois tem um emprego razoável e estável; e, se a questão fosse essa, como explicar que ela não tenha procurado fazer economia cortando antes coisas supérfluas, como mensalidade de clube ou viagem para a Argentina, por exemplo? Talvez porque tais coisas para a minha mãe sejam mais prioritárias do que a vida do próprio filho. Diferente das mães que citei antes. E é naquelas mães que penso quando julgo verdadeiras as expressões “instinto materno” ou “coração de mãe”.

E o mais perverso nisso tudo é que minha mãe fez uma verdadeira lavagem cerebral (talvez por vergonha da gravidade do que resultou dos “lapsos de atenção” dela) no menino inocente e maleável que eu era para que eu me sentisse o único culpado e responsável pela perda do transplante. E, durante muitos anos, ironicamente, além de arcar com todos os prejuízos físicos e morais dessa perda, eu ainda carreguei comigo um torturante sentimento de culpa e a pecha de inconsequente, como se EU fosse o irresponsável na história... Só muito recentemente, após o episódio do plano de saúde que mencionei antes, é que comecei a refletir sobre tudo isso e meus olhos se abriram.

E agora que as máscaras caíram, a verdade está escancarada e já não há pudores, minha mãe faz o seguinte comentário sobre a minha doença, a hemodiálise, a perda de meus rins biológicos (que começaram a se deteriorar quando eu era bebê, aos cuidados dela) e dos transplantes, e, por conseguinte, sobre este blog: “Chega dessa babaquice”.

Como o personagem Neo, de Matrix, eu despertei para o pesadelo de minha realidade.

12 comentários:

  1. Sua mãe fez merda, mas de vez limpá-la, jogou-a no ventilador. Errou uma vez com o próprio filho, e preferiu continuar errando. PREFERIU. Não conheço nenhum adjetivo que caiba pra uma pessoa como essa. Se é que podemos chamar isso de pessoa. Com certeza você não merece a mãe que tem. Quem não consegue ser gente não consegue ser mãe.

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  2. Porra!... Não sentir remorso é a principal caracteríustica dos psicopatas. Cara, desculpa eu te dizer isso maspelo que eu li a tua velha é psicopata. Sinto por ti, fica na paz!

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  3. Mãe?! Isso é um monstro.

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  4. Sua mãe é uma puta irresponsável.

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  5. Voce escreve super bem! Voce devia tentar procurar uma editora e fazer do seu blog um livro!

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  6. Sinto muito por tudo isso, ninguém deveria passar por uma situação desta.
    Faz tempo que não escreve, está tudo bem?
    Minhas sinceras preocupações...
    beijos

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  7. Cara, vc está bem!!!?? Dá notícias por favor\

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  8. Ola Guilherme, como vc esta ?

    Mande noticias.

    Cintia

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  9. olá meu nome é mauricio trabalho de enfermeiro no setor de hemodialise de um hospital ,e gostei muito do seu blog .te desejo Que as forças do senhor estejam com vc.abraço

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  10. Sou técnica em hemodiálise...sei bem o que sente. que Deus te ajude a enfrentar esse desafio de vida...acredite no amor de Deus somente.

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  11. Oi Guilherme, olá, como está você? Bem eu me deparei com seu blog por um acaso, acabei lendo seus posts, e, bem, gostaria de te dizer que, apesar de toda dor e sofrimentos expressados por você em seus depoimentos, nós acabamos descobrindo um belo e inteligente escritor. Sabe, caro amigo, Deus tem certos meios que não podemos compreender para nos despertar talentos, e quem sabe, você, não se teria descoberto se não tivesse vivido e estivesse vivendo todas essas experiências na sua vida. Deus tem o melhor pra você! Creia, lute, e confie no Senhor! Juliana. julianacf28@hotmail.com

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