sábado, 16 de outubro de 2010

Sessão de Hemodiálise 459

Antes de colocar a segunda parte do post relatando como perdi meu primeiro transplante, resolvi encaixar aqui um assunto que nada tem a ver com isso, apenas a título de curiosidade, e contar algo que me aconteceu certa vez, durante uma cirurgia, aproveitando a oportunidade de que o filme baseado numa situação semelhante ainda está passando na TV.

O filme chama-se Awake – A vida por um fio. Embora na ficção os acontecimentos sejam extremamente exagerados – afinal, trata-se de um suspense e precisa ser emocionante –, o fio condutor da história, por mais absurdo que pareça, é algo que realmente pode acontecer (tive minha própria experiência disso, ainda que em escala muitíssimo menor) e tem até um termo médico para designá-lo: “consciência transoperatória” – quando o paciente acorda da anestesia antes do fim da operação.

Eis o que me lembro.

A impressão de que eu estava despertando chegou-me suavemente, junto com o ar gelado do ambiente refrigerado do centro cirúrgico. Sentir aquele ar (com cheiro de assepsia tão característico) tomando meus pulmões e enregelando até o último alvéolo, não deixava claro se aquilo era real ou um mero pesadelo. O frio e o murmúrio de vozes indistintas – seriam humanas? – trouxeram-me a hipótese de que talvez aquela fosse a minha morte. Era provável. Havia entrado lá para fazer um procedimento cirúrgico relativamente simples, mas acabara morrendo. Entretanto, alguém ou alguma coisa estava cuidando de mim, preparando-me para uma viagem tão distante que seria impossível imaginá-la – a última jornada, para o infinito. Talvez estivessem planejando me contar o que havia ocorrido, quando eu estivesse consciente. Apesar de a mente divagar anos-luz, o delírio durou poucos segundos, e foi interrompido pela voz de um homem, sussurrando com uma calma que se contrapunha ao meu horror: “Vou dar um pontinho aqui...”.

Então, meu cérebro ligou como letreiro de neon na névoa, a consciência caindo como um raio na terra, dando imediatamente ao ouvido o papel principal como testemunha de que aquilo, de fato, estava acontecendo: vozes embaralhadas de médicos e enfermeiros debruçados à minha volta, que vez por outra se faziam ouvir, sobrepostas pelo compassado, insistente e ensurdecedor som de um monitor cardíaco – um barulho isolado de metais se chocando, talvez um bisturi atirado à bandeja cirúrgica...

Não sentia dor alguma. Mas, o pânico por acordar da anestesia geral – e ninguém se dar conta disso – parecia coisa de Edgar Allan Poe, cujo conhecido pavor de ser enterrado vivo acabou lhe inspirando tantas histórias. Eu experimentava um terror real, bem humano, nada sobrenatural. Pensei que, abrindo os olhos, a equipe provavelmente perceberia que eu estava retornando da anestesia, mas minhas pálpebras ou pareciam coladas ou pesavam toneladas.

Súbito, uma voz feminina, com a melodia da redenção, entoou:

“Doutor, o paciente está acordando...”

Então, surgiu a voz do médico, a mesma do “pontinho”, mais grave e mais decidida dessa vez, encobrindo a música de rádio que tocava bem baixo ao fundo: “Oi, está tudo bem, já já você vai para a sala de recuperação. Já estamos acabando...”. Medo, angústia, impotência, autodefesa, algo assim ou tudo junto me fez lutar para tentar abrir os olhos à medida que meu cérebro registrava e decodificava o conteúdo absurdo daquela frase que chegava aos meus ouvidos; a certa altura da tentativa, não sabia se meus olhos estavam abertos e a visão embaçada, ou se minhas pálpebras haviam se tornado translúcidas. Tentei falar, mas grunhi com a autoridade de um besouro, sentindo apenas a garganta seca lançar a vibração em meus lábios rachados, percebendo, em seguida, que por meio da fala não conseguiria o que desesperadamente implorava por dentro: “Me anestesia! Me anestesia! Me anestesia, caramba!”.

O efeito da anestesia que havia me colocado em sono profundo começara a passar há séculos – menos de um minuto, no tempo de um relógio –, eu já conseguia visualizar com mais nitidez agora (infelizmente) o médico sobre mim, trabalhando na região da minha barriga, sem dúvida alguma costurando o corte em meu corpo. Causou-me um enorme mal-estar presenciar o abaixar e levantar de uma das mãos dele, puxando com uma pinça o fio dos pontos que uniam a minha pele rasgada, como uma excêntrica exibição de balé aquático, só que sem a água. “Está com dor?”, perguntou-me o indivíduo debaixo da touca cirúrgica. Eu ali, imobilizado, e o médico falando comigo enquanto continuava tranquilamente o seu trabalho. Tentei me manifestar a todo custo e tal esforço com certeza transpareceu no meu semblante. Minha expressão devia ser a de uma criança que tem medo de palhaço deparando-se com um palhaço que ama ser palhaço, o mais puro desespero no olhar, pois logo desceu sobre meu rosto uma turbulenta máscara emanando um vapor frenético, e a partir daí eu não vi mais nada.

3 comentários:

  1. Muito gostoso de ler, interessante e engraçado...está de parabéns! Quero mais! rsrs

    ResponderExcluir
  2. NOSSA. Shepa, você é foda.

    ResponderExcluir
  3. Guilherme,

    Em que serviço de diálise você está? Tenho um filho em diálise e gostaria de trocar informações. Meu e-mail é barbara.cartorio@gmail.com.
    Parabéns, você escreve muito bem.

    ResponderExcluir