Então, como comentei no penúltimo post, Sessão de Hemodiálise 458, aos 15 anos eu tinha, notoriamente, o desenvolvimento emocional de uma criança de 10. Fiz o meu primeiro transplante renal nessa época, em dezembro de 1995 (ver fotos no post 458). A equipe médica que me acompanhava na ocasião testou meus pais, divorciados, e acabou escolhendo minha mãe como doadora. Depois de passar três semanas no hospital, recuperando-me, tive alta e fui para casa com uma perspectiva de vida como nunca tivera, a oportunidade de finalmente conhecer o que é ser uma pessoa saudável. Sentindo-me “curado”, em outras palavras, da minha enfermidade.
Meses depois que me doou o rim, minha mãe, que é médica-veterinária, foi tratar da vida dela, indo morar sozinha com o meu padrasto (citado no post 448) e me deixou com os meus avós, que, embora maravilhosos, naquele momento começavam já a apresentar sinais de senilidade e debilidade física (inclusive, eu ajudava a limpar as escaras da minha avó, presa ao leito), e a Chiquinha, uma alma de ouro, porém, humilde e iletrada, incapaz, portanto, de compreender a complexidade da medicação imunossupressora que eu deveria tomar após o transplante (falo sobre eles no post 437). Assim, fiquei com a responsabilidade de tomar sozinho os remédios para a conservação do rim.
Ora, que responsabilidade pode ter uma criança para coisa tão importante? O próprio nefrologista que recomendou meu transplante se referiu a mim na ocasião como criança (ver carta de encaminhamento, reproduzida no post 415). E, mesmo não se levando em conta a minha patente imaturidade, e considerando-se apenas a minha idade cronológica, ainda assim, se naquela época eu não era apto a dirigir, votar, casar, assinar cheque nem nada importante, muito menos tinha eu condições de assumir sozinho essa vital incumbência, sem a vigilância do adulto responsável por mim – no caso, minha mãe –, cuja responsabilidade deveria, é lógico, englobar minha integridade física e, em última análise, minha própria sobrevivência. Definitivamente, não era tarefa para ser deixada nas mãos de uma criança que não entendia direito que o transplante não era a cura, e sim mais um tratamento (infinitamente melhor do que a hemodiálise em todos os sentidos – principalmente porque possibilita uma expectativa de vida quase equivalente à de uma pessoa sã –, mas, ainda assim, um tratamento), e que aqueles “remedinhos” não eram simples vitaminas ou analgésicos, que podem ser esquecidos que não faz mal. Naquele tempo, o remédio mais importante, Sandimum, que evitaria a rejeição, era ainda mais complicado de ingerir, pois era líquido e tinha um gosto ruim, e os 2 ml que eu tomava da droga precisavam ser dosados com precisão, com uma seringa especial, que vinha junto com ela. A medicação imunossupressora é algo tão sério que se a pessoa não segue religiosamente a quantidade e o horário, já coloca o enxerto em risco. Se esquecer de tomar alguns dias, então, já era. Tem início a perda irreversível do rim transplantado, a rejeição por “não aderência à medicação”, como chamam os médicos.
E foi o que aconteceu comigo: estava tão deslumbrado com o que eu achava ser a cura que me iludi, pensando que finalmente era um menino como todos os outros, como os meus amigos. Por falta da vigilância de um adulto capaz, perdi o rim transplantado, tão precioso, que poderia estar comigo até hoje. E essa perda resultou numa deterioração progressiva de minha saúde – sendo que o mais grave foi o comprometimento sério de meu coração ao longo dos anos – e desencadeou várias complicações que colocam minha vida em risco continuamente, ainda mais agora que estou na hemodiálise. Acho que minha mãe pensou que, ao doar o rim, seu papel já estava cumprido, que já havia feito a parte dela; mas, não creio que toda e qualquer mãe pensaria ou agiria da mesma forma. Às vezes, fico vendo o caso de mães de filhos com paralisia cerebral, por exemplo, mulheres com muito menos instrução e condições do que ela, que se dedicam a cuidar dos filhos com desvelo, muitas vezes carregando no colo os filhos já adultos, pra cima e pra baixo, pegando várias conduções, acompanhando-os em seu tratamento; mães em situações muitíssimo mais difíceis do que a dela e que mesmo assim nunca desistem dos filhos. No caso de minha mãe seria tão fácil me ajudar a tomar a medicação corretamente (2 vezes por dia, apenas) e ela não fez isso... Fico imaginando se eu fosse um desses casos que citei. A verdade é que, no final das contas, essa postura dela acabou resultando no desperdício de um transplante excelente, em muito sofrimento e infelicidade para mim durante esses anos todos, e na redução de minha expectativa de vida. E hoje vivo o drama da hemodiálise e nem precisaria necessariamente estar nesta situação – e por mais de uma razão: para começar, se minha mãe fosse mais atenta, eu sequer seria renal crônico (ver post 410). Mas isso é outra história, que ficou no passado. O problema é que essas coisas continuam acontecendo; recentemente, depois que minha saúde se agravou e eu comecei a sofrer convulsões e tive uma parada cardíaca, precisando ser ressuscitado, ela teve a frieza de cortar deliberadamente o meu plano de saúde que me garantia atendimento de emergência nos hospitais e remoção por ambulância, além de exames mais complexos e consultas – e não por falta de dinheiro, pois tem um emprego razoável e estável; e, se a questão fosse essa, como explicar que ela não tenha procurado fazer economia cortando antes coisas supérfluas, como mensalidade de clube ou viagem para a Argentina, por exemplo? Talvez porque tais coisas para a minha mãe sejam mais prioritárias do que a vida do próprio filho. Diferente das mães que citei antes. E é naquelas mães que penso quando julgo verdadeiras as expressões “instinto materno” ou “coração de mãe”.
E o mais perverso nisso tudo é que minha mãe fez uma verdadeira lavagem cerebral (talvez por vergonha da gravidade do que resultou dos “lapsos de atenção” dela) no menino inocente e maleável que eu era para que eu me sentisse o único culpado e responsável pela perda do transplante. E, durante muitos anos, ironicamente, além de arcar com todos os prejuízos físicos e morais dessa perda, eu ainda carreguei comigo um torturante sentimento de culpa e a pecha de inconsequente, como se EU fosse o irresponsável na história... Só muito recentemente, após o episódio do plano de saúde que mencionei antes, é que comecei a refletir sobre tudo isso e meus olhos se abriram.
E agora que as máscaras caíram, a verdade está escancarada e já não há pudores, minha mãe faz o seguinte comentário sobre a minha doença, a hemodiálise, a perda de meus rins biológicos (que começaram a se deteriorar quando eu era bebê, aos cuidados dela) e dos transplantes, e, por conseguinte, sobre este blog: “Chega dessa babaquice”.
Como o personagem Neo, de Matrix, eu despertei para o pesadelo de minha realidade.
