As cicatrizes dessa guerra não são apenas evidenciadas pelos cortes, mas também pelas perfurações. Os furos são invasões que também deixam marcas. Só pelas agulhas de hemodiálise, aquelas calibrosas, levando-se em conta que são duas espetadas por sessão e que eu já fiz o tratamento por alguns meses em 1995, o número passa de 1.000. Outras agulhadas são impossíveis de contabilizar, nem dá pra fazer uma estimativa. Foram tantas ao longo da vida que, para se ter uma ideia, na dobra do meu braço direito – no qual as veias estão muito judiadas porque é o braço usado pra tudo: coleta de sangue, soro, medicações, transfusões etc., já que não podem usar o braço que tem a fístula – há uma cicatriz formada pela sucessão de perfurações.
Bisturis e agulhas produzem cicatrizes no corpo e na alma. São 30 anos de doença, minha vida toda, não conheço outra condição senão esta em que estou inserido: hospitais, tratamentos, remédios, falta de saúde, enfim. No meu caso, um transplante é o mais próximo que se tem de uma vida normal, com qualidade, e, se pensarmos que essa é uma doença que, diferente de outras que são mais agressivas e mortais a curtíssimo prazo, pode subjugar os pacientes de “mais sorte”, se é que se pode dizer assim, indefinidamente, cozinhando-os a fogo lento, já que existem terapias substitutivas da função renal, podemos concluir que nunca será prioridade na busca por uma cura.
Enfrentar a hemodiálise é uma batalha. Entrar na sessão e sair dela bem (dentro do possível), ou, pelo menos, sair vivo, já é uma vitória para um renal crônico. Ganha-se uma batalha, mas a guerra está perdida.



